Carlos Mendes. "Achava 'Amélia dos Olhos Doces' horrível"
Carlos Mendes, de 71 anos, sobe ao palco do Capitólio, em Lisboa, para cantar "Amélia e as mulheres das nossas vidas", um novo espetáculo que viaja até à Casa da Música, no Porto, no próximo dia 20. "No fundo é uma exaltação ao feminismo, um hino à mulher", conta. São mais de 50 anos de um percurso em que "o amor, as relações, o desamor, o encontro, o desencontro" sempre estiveram presente nas canções a que deu voz.
Ao DN recorda como "não tinha escapatória", a música já estava no sangue, de como se respirava cultura em casa e dos tempos em que se reunia com os amigos no jardim para tocar. Foi o começo de quase tudo. Dos Sheiks ao Festival da Canção, do momento em que a RTP lhe disse para não ganhar na Eurovisão, passando pelo arquiteto - foi um dos que assinou o hospital de Guimarães -, até à faceta de ator e apresentador. "Acho que o palco é o sitio da grande ilusão", diz.
Apresenta este sábado, 8 de dezembro, "Amélia e as mulheres das nossas vidas", no Capitólio, em Lisboa, e no dia 20, na Casa da Música, no Porto. Quem são as mulheres da sua vida?
As mulheres da minha vida são muitas, mas quando eu me refiro às mulheres da nossa vida é no fundo é uma exaltação do feminino, um hino à mulher. As mulheres da nossa vida pode ser a que amamos muito e com quem vive ou pode ser uma professora primária, uma amiga que temos, uma avó... Durante quase toda a minha vida, desde que comecei a cantar a solo, de um modo geral cantei sempre mais o amor do que outra coisa. As relações entre pessoas, a amizade, o amor. Foi mais partindo disso, até porque tenho canções escritas por mulheres, poetizas, como a Sofia de Mello Breyner, a Rosa Martins que escreveu agora um texto para eu cantar e o próprio Joaquim Pessoa tem muitos textos que eu musiquei nomeadamente a "Amélia [dos Olhos Doces]". O amor, as relações, o desamor, o encontro, o desencontro sempre foram uma linha condutora.
Mas quem são as mulheres da sua vida?
Na minha vida tive muitas mulheres, mas ao fim ao cabo acabei por ter só duas. Uma que é a mãe dos meus filhos mais velhos, a Ana Maria [Lucas], de quem me divorciei, e depois a mulher com quem vivo que é a Helena Corado, a mãe do meu outro filho, que é cantor também. Tive algumas mulheres, sobretudo quando era miúdo. Era muito muito namoradeiro. Depois a vida assenta-nos.
E a Amélia dos Olhos Doces existiu?
Não como a mulher da minha vida, mas existiu como figura. A história é muito simples. Amélia é um nome que o próprio poeta, Joaquim Pessoa, criou. Quando morava na Avenida do Brasil e ele vinha da minha casa para o Lavradio, Barreiro, passou ali em frente ao Liceu Camões e estava uma prostituta sentada num dos bancos do jardim. E quando eles passaram, ela olhou para o carro e os olhos eram doces de uma mulher que sofre. Uma mulher sofrida e com um olhar muito doce. O Joaquim Pessoa vinha com outro poeta que morava aqui, o Manuel Branco e disse: "agarra aí num papel e escreve isto: Amélia dos Olhos Doces". E foi até ao Barreiro com o outro a escrever e ele a dizer o poema. Mostrou-me a letra no dia seguinte e eu, de repente, peguei na viola e fiz a música. Ele deu-me um grande abraço: "Temos um sucesso". E eu disse: "Vou rever a música toda, porque não presta para nada". Quase que andámos à pancada por causa da Amélia. Acabei por deixar assim. Eu gostava tanto da música ou tão pouco que estava no lado B, era a última música. Achava aquilo um horror. Em casa própria não sabemos fazer crítica. É uma música que não posso deixar de cantar.
Nestes espetáculos vai cantar com o seu filho mais novo, Jazzafari.
Ele costuma sempre cantar comigo e geralmente é o "Siripipi de Benguela" que é uma canção que deu que falar muito nos anos 80 quando eu gravei pela primeira vez o "Triângulo do Mar". O meu filho tem uma capacidade de improviso muito grande e eu disse-lhe: "tu eras capaz de agarrar aqui nestes acordes, fazeres uma letra e dares uma outra indicação ao tema sem fugires ao espírito da música". Escreveu uma letra muito bonita, que fala sobre a guerra, sobre o amor, uma versão completamente nova. O que é engraçado nisto é que ele agarra nos acordes e faz outra coisa completamente diferente, mas se se ouvir tem-se a sensação que se está a ouvir o "Siripipi de Benguela" na mesma, o que é muito interessante. É um exercício musical, de composição, muito interessante.
Os seus três filhos estão todos ligados à música
Eu nem provoquei nada neles. Andaram sempre muito livres, fizeram o liceu, o do meio foi para a faculdade, sociologia, o mais velho tirou um curso de hotelaria e o mais novo disse-me:" "pai, gostava de aprender jazz". Isto numa altura em que ele vinha do hip hop, com aquelas calças muito largas, bonés, aquelas coisas todas. Todos enveredaram pela música. O Francisco tem um projeto muito interessante que é o Foco Musical, em que trabalha com as crianças e com as escolas através da música e dos instrumentos, o Miguel é o que me faz o som nos espetáculos, é técnico de som, mas ao mesmo tempo também compõe para bailados contemporâneos e em relação ao João [Jazzafari] está a sair um disco dele em que ele consegue fazer uma mistura do Hip Hop com o Drum and Bass e o jazz.
Imaginou que isso pudesse acontecer?
Muito sinceramente pensei que eles seguissem outras atividades. Nunca pensei até por causa da dificuldade da vida artística em Portugal, que é extremamente difícil. É complicado.
Alertou-os para essas dificuldades?
Sempre. Aliás, eu nem precisava de alertar porque eles viam. Havia momentos em que, como diz o Herman [José], existiam momentos em que o interruptor estava para cima, portanto havia muita luz, mas em outros momentos o interruptor estava para baixo. Eles habituaram-se.
A música entra na sua vida muito antes dos Sheiks.
A minha formação é de arquiteto. Eu até costumo dizer que a arquitetura é um curso e a música um percurso. Porque comecei a fazer música muito cedo, até estudava com a minha mãe, que era professora de piano, ainda cheguei a conhecer a professora dela, que me deu aulas durante muito tempo. Em casa, o ambiente musical, artístico, o gosto pela história da arte, e não só, foi muito incutido em nós pela minha mãe. O meu pai era médico, era mais pelo lado da ciência que ele falava connosco. Tive a sorte de ter uma mãe, um pai, uma avó e irmãos muito cultos. Eu vivia no meio da cultura. Depois a minha mãe em termos musicais levava-me muito a concertos, às palestras do João Freitas Branco. O meu pai tinha uma frisa no São Carlos. Era impossível ficar indiferente. Depois as visitas de casa, que o meu irmão mais velho levava. Era tudo malta ligada ao teatro. O meu irmão mais velho também esteve ligado ao teatro e depois seguiu medicina. Morreu muito cedo, aos 48 anos. Os amigos dele eram todos do teatro, um deles era o Nicolau Breyner. O Nico era uma visita assídua de casa. Era como um irmão.
Tinha de estar ligado ao mundo artístico.
Não tinha escapatória. Nos Natais, na minha casa costumava-se fazer uma coisa muito interessante que era: nós preparávamos sempre umas canções de Natal, em português ou até em inglês. A minha mãe tocava piano e nós cantávamos. Depois o meu pai cantava uns fados de Coimbra. Ele cantava muitíssimo bem. Foi várias vezes convidado para gravar quando era estudante, mas nunca quis. Havia um senhor amigo de casa que tocava violino muito bem. Eram serões como acontecia no século XIX.
O gosto pela música passou dos seus pais para o Carlos que, por sua vez, transmitiu aos três filhos
Já a minha avó tocava violino muito bem, a mãe da minha mãe. É uma geração de gente ligada à música. Não tinha escapatória. Por isso é que digo que a música é um percurso e a arquitetura um curso.
Começou o seu percurso nos anos 60. Como compara o panorama musical português de agora com essa altura?
Quando comecei na música aquilo era a pré-história. Nós não tínhamos salas de ensaio, então íamos para os jardins. Vivia ao pé da Alameda D. Afonso Henriques. E era ali no jardim que nos juntávamos com as nossas violas e começávamos a dar os primeiros passos. Havia um conceito de união, de irmandade, podíamos ser só aqueles, mas no dia que um saísse aquilo acabava.
Foi assim que tudo começou.
Foi na rua. Sempre estudei num colégio que deixou de existir, chamava-se Infante Sagres, desde a pré-primária até aos meus 15 anos. De fui para o liceu francês. Era um liceu muito avançado e fazia-se lá teatro, música. Lá tive um conjunto no qual eu tocava piano e em que o cantor do era o José Barata Moura, o ex-reitor. Mas antes, lá minha Alameda havia um sítio onde nós nos juntávamos para fumar uns cigarritos às escondidas e tocávamos ali porque fazia um eco muito agradável. E começámos a construir, eu e o Jorge Barreto, um grupo. Curiosamente, o Jorge Barreto, que era mais "capitão de areia" do que eu, ou seja andava muito por todo o lado, conhecia o [Fernando] Chaby e depois formámos ali um grupo de bairro, os Cavaleiros Negros. Pensámos que era foleiro e depois fomos os Black Riders. Começamos a ter uns contratos. Isso foi o começo de praticamente de tudo.
E como surgem os Sheiks?
De uma maneira incrível. Há coisas que acontecem na vida que são acasos. Houve uma altura em que dissemos isto não está a dar nada, não conseguimos nada com isto, portanto vamos ver se conseguimos arranjar dinheiro para comprar bom material. E o Chaby foi tocar com um grupo, os Leopardos, que cediam-nos a aparelhagem para podermos ensaiar. Um dia, ele disse: "olha vou tocar ao Tosco". Era uma casa famosíssima para jovens nos anos 60, depois tornou-se uma casa de mau ambiente. Agora é uma lavandaria. E nós fomos vê-lo. Mas o nosso intuito era ir vê-lo para depois deixarem-nos tocar. E eles deixaram-nos tocar. O dono daquilo disse: "espera aí, isto tem muito mais saída que os Leopardos". Contratou-nos para o carnaval. E acabamos por ficar ali como residentes. E antigamente havia uma coisa que acho que não há, há, os orelheiros para a música. O Vitor Cunha estava lá a beber um copo e ouviu-nos e disse: "vocês não querem gravar". Ele era da Valentim de Carvalho. Aí já éramos apresentados como os Sheiks [Fernando Chaby, Jorge Barreto, Paulo de Carvalho e Carlos Mendes]. E dissemos que queríamos. Gravámos o primeiro disco "Sumertime".
E fizeram a primeira tournée. Como correu?
Foi o dono do Tosco que disse para fazermos uma tournée no Algarve. Foi uma tournée horrível. Não teve praticamente ninguém, porque não havia publicidade, as pessoas não estavam habituadas a este tipo de tournées. Quando chegamos a Lisboa, o homem deve ter tido um prejuízo enorme e confiscou-nos a a aparelhagem. Nós ficamos sem nada e a ideia era acabar, mas eu não queria. Nessa altura que fomos todos para férias e encontramo-nos em setembro na Mexicana, que era o nosso sítio e o Paulo de Carvalho disse que o conjunto Mistério ia acabar. O Paulo disse: "nós podíamos sacar o Edmundo, que era do conjunto Mistério". E a partir daí, o Rui César Simões, que nos tínhamos levado ao Algarve, disse que ia deixar o emprego nas Páginas Amarelas. "Vou fazer de vocês um grupo tal como o Brian Epstein tem [empresário dos Beatles]", disse. E realmente aqueles anos de 1964, 65 e 66 foram o delírio.
Depois vão a Paris.
A ideia era fugir da guerra [colonial]. Na altura, fui muito injustiçado por uma certa imprensa que estava a soldo de um senhor que tomou conta dos Sheiks e depois o grupo acabou porque ele não tinha capacidade, categoria para tomar conta daquilo. Fomos para Paris com o pretexto de atuar e gravar e gravámos os "Sheiks em Paris", é o melhor disco que temos e tocávamos todas as noites num sítio que era o Le Bilboquet. Mas tinha um dever para com o meu pai, que não era rico, era médico e trabalhava de sol a sol. Lembro-me de o meu pai sair de casa quando eu ia para a escola e voltava à uma da manhã. Com o trabalho conseguiu que nós fossemos para os melhores colégios, que tivesse uma frisa na ópera, não porque ele era rico, mas porque trabalhou muito para isso. E uma das coisas que ele nos dizia sempre era para fazermos, pelo menos, o sétimo ano, na altura era mais ou menos o 12º ano ou "entrem para a universidade, o que eu vos posso dar é um curso". O meu irmão já tinha fugido para a Suíça, ele era membro do Partido Comunista Português e, portanto, teve de fugir para não ser preso na altura. Lembro-me perfeitamente de telefonarem lá para casa à procura dele. E ele foi-se embora para a Suíça. A minha ideia de sempre era não fazer a guerra e o meu irmão disse-me: "se vieres para cá vem com o sétimo ano porque se não vieres para o sétimo ano vais para o quinto em francês". Ia começar quase do zero.
Então voltou?
Voltámos todos e quando voltámos tivemos uma reunião os quatro em Campo de Ourique com o tal senhor e a primeira coisa que ele faz quando nos sentámos foi dizer: "estudas ou tocas. As duas coisas não podes fazer". Não me deu alternativa nenhuma. Aí fiquei muito chateado com eles. Saí em 67, faço o sétimo ano e entro para Belas Artes.
Sai chateado com o grupo. Porquê?
Chateadíssimo, porque eles não me defenderam. Ficaram calados.
Aparece então a arquitetura.
Fiz o curso todo de arquitetura, mas a música não acabou. Entrei para a universidade em 67 e em 68 estava a fazer o Festival da Canção. Depois formei-me em 73, mas em 72 participei pela segunda vez no Festival da Canção.
E ganhou os dois Festivais da Canção, com "Verão" e depois com "Festa da Vida". Até que ponto foi marcante o primeiro?
Em 68 não foi muito marcante. Ia fazer 21 anos. Eu e a representante da Finlândia éramos os mais novinhos. A Eurovisão foi no Royal Albert Hall, em Londres. Em 72 foi em Edimburgo. A primeira vez que fui ao Festival da Canção não foi tão marcante porque fui com um espírito completamente diferente, de conhecer Londres, onde é que paravam o John Lennon e o Paul McCartney, Kings Road. Inclusivamente até me apaixonei lá por uma inglesa. Não levei a sério. Assisti a dois ensaios, faltei a um jantar que o Cliff Richard e a BBC organizaram para mim, porque para mim interessava-me mais estar ao pé da rapariga inglesa [risos].
Mas em 1972 com "Festa da Vida" foi diferente?
Foi uma coisa muito séria. Foi em Edimburgo. A produção foi feita pelo Carlos Cruz em toda a Europa, cantei em várias línguas. A certa altura o Arnaldo Trindade, que tinha uma grande empresa onde estavam os melhores cantores, estava o Zeca, o Adriano, uma série de gente. Ele tinha praticamente todos os cantores de intervenção. E ele arranjou um parceiro em Inglaterra, a Parr Records para me apoiar. O que aconteceu? Uma coisa horrível para Portugal. Toda a gente estava a apoiar Portugal para ganhar a Eurovisão. Todos diziam: "já sei que vai ser vencedor". E eu todo contente. Mas a certa altura fomos chamados a Portugal e o Ramiro Valadão, que era o diretor da televisão [RTP], disse ao Carlos Cruz e a mim, no gabinete dele: "nem pensem ganhar o Festival da Eurovisão, é que nem lhes passe isso pela cabeça".
Porquê?
Vivíamos na primavera marcelista, mas de de primavera tinha muito pouco. E eles não queriam ter aqueles países todos em Portugal, diziam que não tinham logística. Não acredito. Politicamente, Portugal era um país fechado, portanto abrir as portas a não sei quantos países... Depois os senhores da televisão começaram a pedir à BBC um honroso terceiro lugar. Um honroso terceiro lugar não se pede. A RTP pediu um honroso terceiro lugar. Ficamos em sexto. Foi durante muitos anos a melhor prestação que Portugal teve. Mas podíamos ter ganho nessa altura. Aliás, quando o Salvador Sobral ganhou, eu disse que foi a televisão que fez um grande investimento. "Para o ano vocês vão ver que não vai acontecer nada disto, para o ano a música vai ficar em último de certeza". Curiosamente, ficou.
E esteve quase para não cantar em 72 na Eurovisão.
Eu gostava muito do Adriano Correia de Oliveira, que gravava para o Arnaldo Trindade. O Adriano foi comigo no avião. Mas sempre que ele saía do país, depois fiquei a saber, a PIDE arranjava-lhe sempre problemas. Quando estávamos no avião, a PIDE chama o Adriano para ser preso e quando o Adriano me diz: "está ali a PIDE eu venho já". Levantei-me e disse: "Se ele não vem comigo, que é o meu convidado, eu não vou cantar". Foi um burburinho naquela altura. Se aquilo desse para o torto eu ia preso. Não tinha medo, já tinha prática de ativista na Escola de Belas Artes, fiz parte de movimentos estudantis. O que é certo é que quando cheguei a Londres ele já lá estava. Mais tarde é que soube que ele de facto foi à polícia, o avião ficou ali algum tempo de espera, e entra depois pelas traseiras do avião e fica lá atrás.
Mas depois houve uma fase em que se afastou da música.
Resolvi virar-me para a arquitetura.
Chegou a exercer?
Sim. Na altura dos Sheiks ia para o atelier do arquiteto Portela ganhar prática. E depois em 68 fui convidado para ir para uma empresa que era do filho do Marcelo Caetano e fiquei lá até ao 25 de abril. A música ficou um bocado posta de parte o que não quer dizer que eu não tocasse sempre piano, não andasse a estudar.
Mas porquê a arquitetura?
Eu desenhava bem. Conheci um rapaz que era desenhador que me levava para o atelier. Havia também um arquiteto que se chamava Zinho, que era tio de um amigo meu e eu às vezes ia lá ao atelier dele. Via aquele ambiente, o estirador e gostei daquele cheiro, dos lápis e das canetas, dos papéis... Não queria nada era medicina, que era a área do meu pai e dos meus irmãos. E o meu pai adorava que eu fosse médico também porque assim abria a clínica dos Mendes [risos].
Deu-lhe um desgosto?
Não. A arquitetura estava ligada às artes . Havia arquitetos que cantavam, outros que eram cenógrafos, realizadores de cinema. Eu não fui para a Faculdade de Arquitetura como há hoje. Fui para a Escola de Belas Artes de Lisboa onde se juntavam arquitetos, pintores e escultores. Era diferente. Era uma coisa de artistas e achava aquilo o máximo. Também podia tocar piano, também podia fazer os meus happenings. Naquela altura dos anos 60 e 70 era tudo paz e amor, vivido ao máximo.
A música sempre esteve um passo à frente da arquitetura?
Sempre. Tornei-me arquiteto, não posso dizer que era excecional, mas os meus colegas gostavam muito de mim, e os professores também. Sempre tive boas notas. No 25 de Abril saí da empresa do filho do Marcelo Caetano e entretanto fui convidado para ir fazer o hospital de Guimarães. Fui eu e mais três colegas para a Direção-Geral das Construções Hospitalares e fizemos o hospital de Guimarães. Enquanto estávamos a trabalhar havia colegas que diziam: "olha hoje à noite há uma coisa fantástica, vem um arquiteto inglês falar à Gulbenkian". Eu dizia "ok" e ficava ali a desenhar. Depois outro dizia-me: "Esta noite vai haver uma Jam Session no Hot Clube, tu não podes faltar". Eu até já nem sabia da Gulbenkian, queria logo ir. Onde havia música, eu queria estar presente. Há uma altura na vida em que dizemos: "isto já não dá".
Chegou a fundar uma editora em 1975, a Toma lá Disco. Porquê?
Foi com o Joaquim Pessoa, com o Vilas Boas, que era do Jazz, o Fernando Tordo também e com o Ari. O Paulo de Carvalho não esteve na fundação, mas participou. Deu-se o 25 de Abril, as coisas ficaram muito divididas, eu era militante do partido comunista. As pessoas eram muito rotuladas e havia uma grande fratura mesmo no meio musical. Era uma coisa um bocado clubística, que não agradava, mas o que é certo é que se passou nessa altura. Existiam posições muito extremadas e nós não conseguíamos gravar. Nós resolvemos criar uma editora apoiada pelo Partido Comunista porque sozinhos não conseguíamos. Fiz ali os meus dois grandes discos, o Amor Combate e Canções de Ex-Cravo e Malviver, onde está a "Amélia dos Olhos Doces".
Um sucesso.
Foi um boom. Aliás, as vendas daquilo eram uma coisa louca. Se eu lhe disser que praticamente não ganhei nada com a Amélia dos Olhos Doces, em direitos de autores, não acredita.
Porquê?
Porque aquilo era a altura do PREC [Processo Revolucionário em Curso]. Era uma confusão, nem sei. Eu não sou muito bom em contas. Sou melhor em outro tipo de notas.
E como surgem os discos infantis?
Eu fui habituado em miúdo a ter como uma referência do cinema o Danny Kaye, um artista que infelizmente é muito pouco conhecido mas que foi dos melhores cómicos que eu vi na minha vida. Em todos os filmes cantava. Gostava também de fazer como ele. De fazer canções que os miúdos cantassem, fazer palhaçadas para os miúdos a representar. Trabalhar com crianças é mágico e eu fiz muitos espetáculos para crianças com discos que fiz como o Jardim Jaleco, e o Natal do Pai Natal. Adorava.
Ser apresentador é outra das suas facetas. Atualmente conduz o "Autores", na TVI. Mas também faz representação. Esteve, por exemplo, nos "Morangos com Açúcar".
Sou talvez um bocadinho polivalente nesse sentido relativamente às pessoas da minha geração. Sempre achei que o palco cantado ou não cantado é um momento de representação. Acho que o palco é o sítio da grande ilusão. Gosto do palco, porque me enamoro não só pelos músicos, mas pelo público. Portanto essa interatividade tem de existir e eu tenho de ter uma expressão. O cantor não pode ser uma coisa estática, sem expressão, meia híbrida, tem de ter qualquer coisa que entusiasme. E eu sempre gostei muito de representar, aliás por causa do Nicolau e do meu irmão.
Não encara a representação e a apresentação como hobbies?
De maneira nenhuma. A primeira vez que fui convidado para representar foi pelo Artur Ramos, era um encenador da velha guarda. Foi para fazer um monólogo, um marinheiro que cantava uma história. E eu gostei muito daquilo. E trabalhei muito na Comuna, não como ator, mas tinha lá o meu estúdio de música e de ensaios que o João Mota me tinha cedido. Trabalhei lá quase 11 anos. Fiz músicas para teatro, ganhei um prémio, e para cinema também.
Tem novas canções preparadas para ver a luz do dia?
Há muitos originais, mas o disco A Festa da Vida [lançado em abril deste ano] ainda não fez o percurso que deve fazer. Espero que dê frutos para o ano, que haja mais espetáculos. Depois tem de se estar sempre a renovar.