"Carlos Cruz é hoje melhor pessoa do que quando o conheci em 2003"
Ricardo Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz, teve esta semana uma vitória. O Tribunal dos Direitos do Homem condenou o Estado português ao considerar que não tinham sido dadas todas as garantias de defesa a que o seu cliente tinha direito. A partir daqui, diz em entrevista ao DN, tudo pode mudar outra vez. Depende se o Estado recorre ou não e "a decisão será da ministra da Justiça".
O advogado de 64 anos aceitou em 2003 um pedido do colega Serra Lopes para entrar na defesa de Carlos Cruz no caso Casa Pia. A partir daí, muita coisa mudou na sua vida pessoal e profissional. Basta dizer que o seu filho mais novo tem 16 anos, "cresceu com o processo", e que tem duas datas na sua vida que servem de referência: o 25 de Abril e a prisão de Carlos Cruz, um nome que pronuncia por vezes com a voz embargada. "Do ponto de vista humano é agora melhor pessoa do que em 2003", porque "foi ao outro lado da vida".
Conhecia o Carlos Cruz quando aceitou o processo Casa Pia?
Não.
O que o levou então a aceitar o caso?
O pedido do Dr. Serra Lopes, que era meu amigo e eu já tinha sido advogado de algumas coisas familiares dele e o escritório dele já tinha sido advogado de algumas coisas familiares minhas, e tínhamos uma relação de grande amizade e de confiança. E, neste processo todo, foi um companheiro excecional. Foi uma pessoa com quem aprendi imenso, um advogado com uma cultura absolutamente invulgar, como já não há em Portugal. Foi aliás à pessoa a quem eu telefonei, depois do Carlos Cruz, sobre a decisão do Tribunal Europeu e a quem eu dedico esta vitória. Há duas datas que funcionam como referência na minha vida para quando quero situar um facto: o 25 de Abril e a prisão de Carlos Cruz na madrugada em 2003.
Porquê?
Porque teve tal repercussão na minha vida que tenho sempre de referenciar se já estava com o caso do Carlos Cruz ou não. A nível profissional tive repercussões terríveis. Envolvi-me muito e prejudiquei muito a minha vida profissional noutras áreas. Foi uma coisa muito marcante. Por isso, há coisas que sei que fiz antes e que deixei de poder fazer, porque estava assoberbado com este processo.
Que idade tinha?
Tinha 48 anos. Hoje - quinta-feira - fui visitar um cliente à prisão e umas guardas vieram ter comigo para me dar os parabéns pela vitória no Tribunal Europeu, mas disseram-me: "Verifica-mos que na altura o senhor não tinha cabelos brancos e hoje já só tem cabelos brancos." O meu filho mais novo nasceu em abril de 2002 e o processo acompanhou o crescimento dele. São marcas da minha vida pessoal que estão ligadas a este processo terrível.
Fala de situações marcantes...
Marcantes por várias razões. Primeiro, pelo tempo que me tomou, o que implicou uma alteração na minha vida profissional. Durante vários anos senti que a minha vida profissional estava tomada por este processo. E isso foi complicado a vários níveis até do ponto de vista financeiro.
Nunca pensou em desistir?
Não...
Nunca teve dúvidas?
Claro que tive. Formei a minha convicção ao fim de muitos meses. Aliás, disse ao Carlos Cruz que tinha a obrigação deontológica de acreditar no que ele me estava a dizer, mas que, se durante a evolução do processo me sentisse desconfortável, sairia. Manteria silêncio absoluto, respeitando o segredo profissional, mas durante meses testei o Carlos Cruz...
Testou?
Eu não o conhecia. Durante muitos meses desconfiei e testei-o até formar a minha convicção. Na altura, dizia-se que os factos tinham ocorrido durante um período de dois a três anos e o teste foi o Carlos Cruz fazer um caderno com o seu dia a dia durante aquele tempo. O que ele fez, procurando restituir os registos dos telefones, dos cartões de crédito, das vias verde, etc. Quando as coisas não batiam certo eu dizia-lhe. Testei-o durante meses. Ele sabe isso. E devo-lhe dizer que só compreendi o que era este caso quando consultei o processo e percebi como tinha sido construída esta história.
Ao longo destes anos construiu uma relação com o Carlos Cruz...
Foi-se construindo uma relação de grande cumplicidade e de amizade. Vou contar-lhe uma coisa, e posso porque ele já falou nisso. Nos primeiros dois anos, e apesar de estar preso e de não ganhar, ele tinha as suas poupanças, várias casas e eu fui sempre cobrando os meus honorários. Ele foi um cliente como outro qualquer, mas, ao longo dos anos, fui percebendo que se foi desfazendo do património, vendendo casa após casa, obras de arte, carros... e fui deixando de cobrar. Hoje não cobro um tostão, mas fiz isto por ele como faria por qualquer outra pessoa que estivesse num processo desta dimensão e deixasse de ter dinheiro. Hoje o Carlos Cruz vive num modesto apartamento arrendado. Percebi como é fácil e rápido passar-se de uma situação de estrelato, em que se tem tudo do ponto de vista do reconhecimento e financeiro, e como uma coisas destas pode destruir a vida de uma pessoa. E a vida dele foi completamente destruída. A ex-mulher, a Raquel, foi uma pessoa extraordinária, mas tudo acabou por ter repercussões. Ele foi preso em março de 2010, no dia 2 faço anos e há sempre um jantar em minha casa com alguns amigos mais íntimos e família mais chegada. Nesse ano fiz questão de o convidar. Depois de ser libertado voltei a convidá-lo e disse-lhe: "Tem sempre lugar aqui no dia dos meus anos até ao dia em que seja reconhecida a sua inocência, depois prescindo de si aqui."
O que sentiu quando ele foi preso?
Em 2010, depois de a sentença ter sido lida, já sabia que ia acontecer. Fui-me preparando. Disse logo aos meus colegas que só iríamos conseguir dar a volta a isto num tribunal internacional, porque em Portugal não iríamos conseguir nada com matéria de facto.
Do que falavam quando o visitava na prisão?
De tudo, do processo, de livros, filmes... e há uma coisa que tenho de dizer, pode parecer estranho, mas é assim que penso, e ele sabe. Do ponto de vista humano, o Carlos Cruz é hoje melhor pessoa do que quando o conheci em 2003.
Porquê?
Ele foi ao outro lado da vida. Percebeu que a vida não é só o estrelato. Como ser humano é hoje melhor pessoa do que quando o conheci em 2003. Alguns tiques ou uma certa sobranceria que tinha desapareceram. Hoje humanamente é uma pessoa com maior capacidade de compreensão, maior tolerância.
Como o define?
Um homem invulgarmente inteligente. Não é um homem que exteriorize muito as emoções. É contido. Suponho que o vi chorar uma ou duas vezes, mas é um homem com uma grande capacidade para compreender os outros e o mundo. É uma pessoa sensível, leal nas amizades e não perdeu o sentido da dignidade.
A sociedade e a justiça portuguesa não estavam preparadas para um caso como este?
Não estavam e não se prepararam. Não fizeram um esforço para se prepararem, a comoção e a revolta pelo facto de ter havido pessoas abusadas era de tal ordem que cegou as pessoas. Não sei se estivesse do outro lado se não teria tido a mesma posição. Não sou capaz de avaliar isso. Ou seja, se o Dr. Serra Lopes não me tivesse pedido para entrar no processo se eu não teria a mesma perspetiva dos outros... por exemplo da Drª Catalina Pestana. Tenho feito este esforço pedagógico. Nunca ninguém me ouviu dizer que achava que havia pessoas no processo a agir de má fé ou que achava que havia uma mente demoníaca que tinha organizado isto tudo. Não. Acho que o que tornou este caso difícil foi exatamente não haver uma mente demoníaca. Se houvesse, teríamos lá chegado, teríamos desmontado tudo. Mas não havia. Isto aconteceu de geração espontânea e cresceu com a naturalidade de qualquer geração espontânea.
Usou muitas vezes a expressão fantasia para falar do processo...
Usei para não ser cruel com as pessoas. Disse muitas vezes: "Isto é uma fantasia consciente ou inconsciente, destes jovens envolvidos no caso. Acho que alguns dos que aderiram a isto o fizeram inconscientemente, alguns convenceram-se que aquelas caras eram mesmo as pessoas que tinham estado com elas. Noutros acho que a fantasia era consciente, sabiam que eles, os arguidos, nada tinham a ver com isto.
Mas acha que esses jovens fizeram tudo isso e não foram abusados?
Acho que todos eles foram vítimas.
O processo serviu para se aprender alguma coisa?
Se este processo acontecesse hoje a comunicação social lidaria de maneira diferente. Seria mais exigente no escrutínio. Mas nunca mais houve nada parecido com o caso Casa Pia. O processo Sócrates, independentemente de se saber se as pessoas são culpadas ou não, tem materialidade: os circuitos financeiros, as casas, o dinheiro, se era do Carlos Santos Silva ou do Sócrates, etc. A Casa Pia é diferente. Além da circunstância dos abusos existiu toda uma construção cénica. Os sítios dos abusos, as datas. Tudo isto é produto de uma fantasia, nada existiu. Portanto, não houve mais nenhum caso como este e espero que nunca mais haja...
Houve um em França quase na mesma altura
Sim, o caso d'Outreau, em que dezenas de pessoas ficaram presas e depois foram soltos. Sabe Porquê? Porque houve retratações. As pessoas retrataram-se num tribunal de recurso. E depois disso a justiça não quis tapar os olhos, quis perceber o que tinha acontecido. E o processo acabou com o governo francês a pedir desculpa aos arguidos e a indemnizá-los.
Não houve retratações na Casa Pia.
Não. Mas houve quatro pedidos de retratação. Quando o processo vai para o Tribunal da Relação houve quatro pessoas, o Carlos Silvino e mais três, que escreveram cartas, que estão no processo, em que admitiram que mentiram e que queriam ser ouvidas outra vez em tribunal. A Relação não os ouviu. Por isso, o Estado português foi agora condenado pelo Tribunal Europeu.
E a partir de agora pode dizer-se que a Casa Pia não acabou aqui?
Não acabou. Agora temos de esperar três meses para saber se o Estado português recorre ou não. Espero que não recorra. A decisão vai ser do governo não é do Ministério do Público e isso é muito importante. Há uma procuradora do Ministério Público junto do Tribunal Europeu, de grande seriedade, mas não será ela a decidir. Seguramente que vai ser a senhora ministra da Justiça. E espero que a posição do Estado português seja a de não recorrer, sendo certo que ao fazer isso não estará a tirar razão aos tribunais portugueses e a dar ao Tribunal Europeu. Ao fazer isto está a ter um ato de humanidade e de justiça. Se o caso ainda suscita todas estas dúvidas, então o melhor é que seja esclarecido.
Se recorrer o que implicará?
Não é que eu tenha receio da decisão de um tribunal superior, mas tenho muita preocupação relativamente ao tempo que isso demora. Uma decisão sobre um recurso num processo como este demoraria seguramente dois a três anos. Para quem já está há 15 anos, seria absolutamente terrível. Não sei mesmo se estaríamos todos vivos até isso acontecer.
E se não recorrer?
Em outubro estarei a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a reabertura do processo. Se o STJ entender que existe fundamento para o pedido de revisão do processo, este voltará à primeira instância e haverá novo julgamento. Mas só restrito ao caso da Av. das Forças Armadas, pelo qual o Carlos Cruz foi condenado.
O que espera?
Pode ser o meu lado otimista, mas acredito que o STJ deferirá este pedido de revisão. Não está obrigado a isso, já houve casos em que entendeu que não se justificava. Neste caso acho difícil que tenha esta posição, uma vez que está em causa um pedido de retratação de pessoas, mas aguardarei o que o STJ decidir e respeitarei. Agora, acredito que o supremo tem todas as condições para deferir este pedido. E espero poder, ainda enquanto advogado, ter o prazer, o gosto, a honra, de contribuir para que este processo fique esclarecido.
Que se volte atrás nas decisões?
Que seja reconhecido que Carlos Cruz e os outros, que foram injustamente condenados neste processo, porque a reabertura do processo terá efeito também para os outros, estão inocentes. Mesmo Carlos Silvino deverá ter direito a uma reavaliação do seu processo, pois tenho dúvidas que em todas as situações em que foi condenado seja efetivamente responsável.
Como gostaria que acabasse este processo?
Que terminasse com os jovens envolvidos a explicar sobre como foram levados a produzir aquele resultado. Que o Estado português pedisse desculpa a estas pessoas e que o país percebesse a tragédia que foi este processo.
O que aprendeu com este caso e o que desiludiu?
O que me desiludiu foi verificar que juízes sérios podem em determinadas circunstâncias não obedecer a princípios de racionalidade e deixarem as suas decisões serem tomadas por convicções pessoais; que não têm os freios necessários para que, com base na racionalidade e numa apreciação objetiva, desapaixonada, decidir com justiça
Refere-se ao coletivo dos juízes do julgamento ou também ao juiz Rui Teixeira?
Rui Teixeira esteve numa fase inicial do processo. Refiro-me aos juízes de primeira instância, a Drª Ana Peres e outros [Lopes Barata e Ester Santos]. Foram uma grande desilusão para mim. Pouco tempos antes das alegações finais eu e os meus colegas do caso fizemos uma reunião para preparação das alegações numa casa que tenho em Trás-Os-Montes. Eles estavam muito pessimistas, achavam que a pressão da opinião pública e da comunicação social, do impacto coletivo de todo o processo levaria o tribunal a condenar estas pessoas e eu vivia na ilusão de que a racionalidade acabaria por se impor, mas não. Aprendi também que, por mais convicção que se tenha de que os juízes decidem com racionalidade, por vezes, isso não acontece.
Foi uma desilusão, uma derrota?
Uma grande desilusão, uma derrota que me marcou muito do ponto de vista da perda de confiança no julgamento. Este foi o lado negativo. O positivo foi perceber que vale sempre a pena não baixar os braços, jogar com todas as armas que temos, desde que sejam legitimas e desde que os objetivos sejam os que se impõem à luz dos valores éticos, e que quando tudo parece perdido, há uma porta que se entreabre e pela qual se consegue entrar. Esta decisão do Tribunal Europeu veio confirmar-me isso.