Carla vive com 60 euros mensais da embaixada. No centro de saúde pediram-lhe 35 por uma consulta

É mãe e acompanhante de uma criança menor que veio de São Tomé para fazer um implante coclear. Também ficou doente, mas esbarrou nos procedimentos legais para aceder gratuitamente à saúde
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Carla é são-tomense e está em Portugal a acompanhar o filho de quatro anos, doente, que foi transferido ao abrigo dos acordos de cooperação para a saúde com os PALOP. Agora é a mãe que precisa de ser vista por um médico, mas o centro de saúde da Amadora pediu-lhe 35 euros por uma consulta. Acontece que o único rendimento de Carla Laranjeira são os 60 euros mensais que recebe da embaixada de São Tomé e Príncipe, que ainda têm que lhe dar para comprar o passe, o pão e fraldas para Bruno.

A denúncia chegou ao DN pela voz embaixadora da Boa Vontade da Cáritas de São Tomé, Isabel de Santiago, que tem apoiado alguns destes doentes que vêm da ilha para fazer tratamentos em Portugal e depois ficam abandonados à sua sorte. "Por razões humanitárias, esta mulher tem direito à prestação de cuidados de saúde. Se é mãe e acompanhante de uma criança transferida de São Tomé, com triplo diagnóstico, se também está em situação de doença como é que lhe pedem 35 euros por uma consulta? Ela não tem sequer dinheiro para viver... É inaceitável que um centro de saúde não respeite o espírito da lei, que a ministra fale tanto da abertura do acesso aos serviços de saúde e não garanta que seja respeitado o artigo 64.º da Constituição para a mãe de um menor doente", afirma.

De acordo com a ARS de Lisboa, "o procedimento adotado pelo ACES Amadora - ou seja, de alertar a senhora que a sua consulta terá um custo de 35 euros - foi o correto, atendendo às orientações definidas para o atendimento de cidadãos estrangeiros no SNS, à situação descrita pela senhora e à documentação que a mesma apresentou à Unidade de Cuidados Personalizados (UCSP) da Amadora". E adianta: "Tal como acontece com situações idênticas, o ACES vai contactar a senhora em causa para aferir se até à data da consulta poderá apresentar a documentação (nomeadamente portuguesa) prevista na lei que possa isentar ou reduzir substancialmente o valor da consulta".

A consulta ficou marcada para dia 15 deste mês, mas até à tarde desta sexta-feira Carla ainda não tinha sido contactada pelo centro de saúde. A última vez que se ali se deslocou foi a 28 de dezembro de 2018, tendo-lhe sido reiterado que teria de pagar os 35 euros.

À luz da lei, apenas os doentes transferidos dos PALOP, após parecer de junta médica, que chegam ao abrigo do protocolo têm acesso a cuidados de saúde gratuitos. O facto de Carla ser acompanhante do seu filho menor e de não ter rendimentos para além dos 60 euros dados pela sua embaixada não pesam. O Estado garante acesso à saúde a todos os cidadãos que se encontrem em território nacional, incluindo imigrantes em situação irregular - o que não é o caso - mas mediante pagamento.

O procedimento que os serviços exigem é que Carla leve documentação, por exemplo da junta de freguesia, que ateste que vive em Portugal, para se poder inscrever no SNS e lhe ser atribuído o número de utente. A inscrição na Segurança Social e nas Finanças, que já tem, não foram suficientes para a inscrever. Nem a documentação do SEF ou da junta médica.

"É inaceitável que medindo o nível de literacia, não lhe tenha sido explicado claramente que tipo de papel pode obter para ter direito à consulta. O que lhe foi dito é que para ter a consulta tem de pagar 35 euros. Isto é violar os direitos humanos. Trata-se de uma mãe que acompanha o seu filho menor para ser tratado e que também está doente. Não se trata assim as pessoas", critica ainda a embaixadora da Cáritas de são Tomé e Príncipe.

Doenças contagiosas com direito a tratamento gratuito

E se Carla sofresse de uma doença contagiosa, como por exemplo, tuberculose? Nesse caso, até um estrangeiro em situação irregular, segundo orientações da Direção-geral da Saúde, "tem o direito de ser assistido na rede de cuidados de saúde do SNS, sem que os serviços prestadores de cuidados se possam recusar a assisti-lo com base em quaisquer razões ligadas à nacionalidade, falta de meios económicos, falta de legalização ou outra".

Como a sua doença não é contagiosa, Carla arrisca-se a ter de pagar 35 euros pela consulta. O seu único rendimento são os referido 60 euros/mês que recebe da embaixada, 50 dos quais gasta no passe para levar o filho à Casa Pia no Restelo onde está a aprender linguagem gestual. A última vez que recebeu da embaixada foi antes do Natal e, embora viva na casa da irmã, os 10 euros que lhe sobram depois de comprar o passe nem com um milagre chegam para comprar o pão, as fraldas para Bruno ou as tiras para medir a insulina, já que a criança é também diabética. Não chega, quanto mais sobrar 35 euros para uma consulta num centro de saúde.

A irmã de Carla dá-lhe teto e alimentação, mas Carla queria um trabalho, nem que fosse umas horas para poder ter o seu cantinho. A assistente social Hospital de Santa Maria, onde Bruno tem sido acompanhado desde que veio de São Tomé, conseguiu que recebesse um cabaz da junta de freguesia. Carla agradece a ajuda, mas não chega, uma vez que não traz nem carne nem peixe e o dinheiro não lhe chega para os comprar. "Só vem esparguete, arroz, as latas, leite, um pacote de fraldas."

Enquanto não consegue umas horas para trabalhar e ganhar algum dinheiro que lhe permita ter um cantinho só seu continuará a viver, de favor, na casa da irmã. E a aguardar por um telefonema do centro de saúde.

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