Carola Rackete, a capitã do navio humanitário Sea Watch 3, é ouvida nesta quinta-feira pelo tribunal de Agrigento, na Sicília. A sessão com a ativista tinha sido marcada para dia 9, mas foi adiada por causa de uma greve contra a política prisional do governo e à qual aderiram os advogados de defesa. É o regresso de Carola Rackete, de 31 anos, a tribunal. Depois de esperar em águas internacionais por mais de duas semanas com 41 migrantes recolhidos nos mares ao largo da Líbia, decidiu entrar no porto de Lampedusa, no dia 29 de junho, ignorou as ordens das forças navais e colidiu com um barco patrulha. Em consequência foi detida..No dia 3 de julho a juíza Alessandra Vella não deu provimento ao pedido da procuradoria em mantê-la em prisão domiciliária sob a acusação de desobediência a um navio de guerra, quando atracou o navio em desafio às leis italianas. A juíza Vella disse que a comandante cumpriu o seu dever e minimizou a colisão, a qual, aliás, a capitã explicou entretanto que foi "um acidente" de manobra. A juíza também recusou dar aval à ordem de expulsão do país..No mês passado, o ministro do Interior e líder da formação de extrema-direita Liga, Matteo Salvini, introduziu novas regras que na prática fecham os portos aos navios de resgate, tendo ameaçado os transgressores com multas de até 50 mil euros e a apreensão dos navios..Ao saber da decisão da juíza, Salvini chamou Rackete de "rapariga alemã rica e mimada", e já antes a tinha chamado de "pirata" e "fora-da-lei" responsável por um "ato de guerra". Também reagiu contra a juíza. "Dispam as becas e candidatem-se pela esquerda se querem entrar na política", escreveu. A associação dos magistrados reagiu em comunicado: "Mais uma vez, comentários depreciativos sobre uma decisão judicial, sem qualquer referência ao seu conteúdo técnico ou jurídico, correm o risco de alimentar um clima de ódio.".O clima já existia: quando Carola Rackete desembarcou um grupo aplaudiu-a e outro, liderado pela ex-senadora da Liga Angela Maraventano, pediu aos gritos que a comandante fosse algemada, enquanto a insultavam..Processo contra Salvini.E como recebeu ameaças de morte, não revela a sua localização por motivos de segurança. Na sequência da tempestade comunicacional de Salvini, Rackete interpôs um processo contra o vice-primeiro-ministro por difamação e instigação à violência e pediu o encerramento das suas contas nas redes sociais. No entanto, não se vê como a inimiga de Salvini. "O seu adversário é a sociedade civil como um todo", disse, porque está em causa "o princípio dos direitos humanos"..Agora, a alemã vai ser ouvida por entrada ilegal em águas territoriais e ajuda à imigração ilegal, pelo que se arrisca, em caso de julgamento, a uma moldura penal de cinco a 15 anos, além de uma multa de 50 mil euros e o arresto do navio. Segundo as leis internacionais, o tráfico de pessoas "só é passível de processo judicial quando há um objetivo de lucro", mas as leis italianas visam também quem o faça sem esse fim..Carola Rackete decidiu levar os 41 migrantes para Lampedusa após ter recebido negativas por parte das autoridades de Malta, França e Alemanha. Nos últimos dias, Carola tem concedido entrevistas com o intuito de explicar a sua ação e de denunciar as políticas europeias face aos migrantes e refugiados. "[A situação] era muito tensa. Vinham todos de um país em guerra civil, sofreram abusos e também tortura. Não tínhamos uma visão clara do futuro e isso aumentou a ansiedade ao ponto de algumas pessoas ameaçarem cometer suicídio...", explicou ao El País .."Tínhamos contactado o porto de Marselha para saber se podíamos atracar. O pedido foi transmitido ao autarca e daí até ao presidente da República, fui informada. Mas ninguém voltou a contactar-nos", disse numa entrevista ao L'Obs ..Solidariedade e milhões.O presidente e o governo franceses não deram resposta, ao contrário da autarquia de Paris, que a distinguiu com a cidadania honorária. Na capital francesa, como numa centena de cidades alemãs, milhares saíram às ruas em solidariedade para com a capitã..A Sea Watch recebeu entretanto 1,4 milhões de euros em donativos. Uma quantia tão elevada que a ONG anunciou a criação de um comité para redistribuir o dinheiro em ações de salvamento no mar, o que inclui outras organizações. "Queremos usar o dinheiro o mais eficazmente possível para resgates no mar, não só para a Sea Watch, mas também para fazer buscas conjuntas onde é mais urgente", disse o porta-voz da organização.."Precisamos de uma solução na Europa para acolher pessoas que fugiram para junto de nós. E para distribuí-las de forma justa. O sistema de Dublin, que coloca a responsabilidade nos ombros dos países com fronteiras externas, não é justo", disse à Der Spiegel . A revista alemã fez capa com a ativista e chamou-a de Capitã Europa. "Havia pedidos constantes ao Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, ao Ministério do Interior. Disseram-nos: "Vamos tratar disso. Mas, na realidade, nenhuma solução foi encontrada, nada de concreto", disse a jovem que não se revê - pelo menos para já - no papel de heroína. "Sou uma pessoa que prefere agir a falar. E creio que esta ação fala por si que chegue.".Branca, alemã, com o passaporte certo.Há quatro anos que Carola Rackete trabalha para a ONG. É comandante do Sea Watch 3 desde o ano passado, tendo já liderado algumas missões. Formada em Ciências Náuticas e com um mestrado em Conservação Ambiental, obtido em Inglaterra, a alemã foi ativista da Greenpeace e trabalhou no Ártico para o Alfred Wegener Institut, dedicado à investigação marinha e polar..O que a levou a ajudar os outros? "A minha vida tem sido fácil. Pude frequentar três universidades, aos 23 anos formei-me. Eu sou branca, alemã, nascida num país rico e com o passaporte certo. Quando percebi isso, senti uma obrigação moral de ajudar aqueles que não tinham as mesmas oportunidades que eu", explicou ao La Repubblica ..Carola Rackete não é a única ativista investigada pela justiça italiana. Pia Klemp, compatriota e também capitã de um navio de salvamento, Iuventa, bem como outros nove voluntários, incluindo o português Miguel Duarte, são acusados de auxílio à imigração ilegal. Uma petição online recolheu mais de 370 mil assinaturas para que as acusações sejam arquivadas.