O cantor Vitorino disse há alguns tempos que "teoricamente estava na reforma", no entanto o seu mais recente trabalho - Vem devagarinho para a minha beira - mostra que essa ainda é uma situação distante. E já tem outro disco na calha: "Não sei quando vai sair, mas terá como título Não sei do que se trata, mas não concordo. São discos diferentes, mesmo que classifique ambos de "neo-românticos", e a diferença estará na alma de cada um deles: "Este, sou eu e dois pianos e resulta de um espetáculo no Teatro da Trindade. O próximo, é mais estruturado a nível do apoio musical."..Quanto à reforma, só diz: "Enquanto conseguir cantar, vou ver se não deixo que me reformem." Curiosamente, este novo disco parece ter sido gravado em tempos de covid-19, tal é a sensação de solidão no que se ouve ao longo das 14 faixas. Vitorino concorda: "Há quem me tenha dito isso, até que gravei este disco para tempos assim. Mas não é verdade, está gravado há um ano e meio. Tem a vantagem de ter sido feito com os três a olhar uns para os outros e por isso resulta tão bem. Sente-se uma grande unidade.".O resultado é uma versão muito intimista do cantor e dos pianistas João Paulo Esteves da Silva e Filipe Raposo. Porquê dois pianos? "Trabalhamos juntos há muito tempo e, sendo eles pianistas de gerações diferentes, têm abordagens que se somam em vez de serem consonantes. Para mim, é quase como uma orquestra e cada concerto torna-se numa peça única, pois nunca tocam o mesmo. Têm partituras, mas preferem improvisar em cima do que estou a cantar", explica. Esse improviso obriga Vitorino a alterar o seu canto? "Completamente, porque com o entusiasmo alargamos os compassos, o nível de participação e do que se está a atirar para o público. Que fica muito atento e torna o espetáculo num momento de grande intimidade.".Como é viver sem público, pergunta-se ao cantor que agora não pode atuar: "É impossível, porque não há música sem público. Interpretar uma canção é sempre um ato de grande cumplicidade com os públicos, nem que sejam apenas duas as pessoas presentes. Não as haver na plateia elimina a inspiração para cantar. Agora, atua-se muito online, mas cantar para um telemóvel como se está a fazer é constrangedor e inócuo. Eu evito fazê-lo. Prefiro ir para a rua e pôr-me a cantar, como fiz no outro dia e ouvi pessoas diziam "quem é aquele maluco que anda a cantar na rua!" Não me importo. Isso aconteceu no dia 25 de Abril, porque eu estava desbragado a cantar e chamaram-me de tudo. Depois, vieram dar me umas flores, houve quem filmasse e tenha mandado as imagens a andar sozinho a cantar na rua. É insólito, mas sinto-me bem pois cantar é um ato de grande descontração.".Modas com António Lobo Antunes.Para o cantor, a seleção do repertório não deixou temas de fora: "Não há canções esquecidas, são 14 no disco mas no espetáculo eram muitas mais. Fui em busca de algumas canções que há muito tempo não cantava em público e de que gosto muito. É o caso de Answer me my love, que é cantada pela Joni Mitchell, de El dia que me quieras de Carlos Gardel, bem como Que amor não me engana do Zeca Afonso, uma canção de amor única.".A voz de Vitorino adapta-se aos boleros de Gardel e o cantor já gravou um disco de tangos em Buenos Aires: "Vivi lá com os tangueros algum tempo e aceitaram-me. Tenho o tango na cabeça porque ouvi muito dessa música quando era miúdo." São composições muito diferentes no registo das que António Lobo Antunes lhe escreveu e de que adaptou versos para boleros: "Dei-lhes algum sincopado dos cubanos, que é uma coisa maravilhosa. É uma música a que eles chamam romântica e que no México e em Cuba, um pouco na Colômbia, se contrapunha à musica romântica americana dos anos 40." Recorda-se-lhe que Lobo Antunes escrevia nas toalhas de mesa quando almoçavam juntos: "Sim, eu ia almoçar com ele todas as semanas, mas isto [a pandemia] isolou-nos muito. E depois eu trazia as toalhas - ainda tenho algumas - onde ele escrevera as modas. E ele escreveu-me um disco só de fados, que se chama Canção do Bandido.".Uma das melhores faixas deste novo disco é Fado Triste, onde Vitorino canta "Dias descuidados / noites à toa". É autobiográfico? "Eu fui um bocado boémio e gostei muito. A noite de Lisboa era uma lição fantástica, sobretudo antes do 25 de Abril porque havia muita gente interessante que fazia a noite - não se contestava nas ruas facilmente e a noite era uma forma de reagir ao estado das coisas no Estado Novo. Isso inspirou-me; ouvi muito fado em casas tão decadentes como interessantes, conheci muita gente do fado. Este Fado Triste tem a ver com uma boémia e uma namorada que se vai embora. Isso acontece a toda a gente. É aguentar.".Quem mandou na escolha: o ouvinte ou o cantor? "Passa mais por uma escolha pessoal porque este disco não é lançado por uma editora, que era quase sempre implacável com o repertório e interferia muito. Agora, estou completamente livre e gravo rigorosamente o que gosto. Já não tenho veleidades em agradar muito porque nunca fui um cantor de grandes vendas ou de muito público, não sou do que chamam mainstream", refere. No entanto, apreciadores não lhe faltam, diz-se-lhe, no que Vitorino concorda: "Tenho um público muito fiel." Mesmo que nem sempre esteja com as suas posições políticas? Volta a concordar: "É verdade. Tenho muita sorte, até porque canto muito mais do Tejo para cima do que do Tejo para baixo. A maior parte das câmaras que me levam a cantar são do PSD lá para cima e tem aí gente que me trata muito bem. Gosto muito de ir cantar ao norte.".Temos visto uma valorização do cante, uma fase porque já passou há muito tempo. Aprecia o que está a acontecer? "O meu primeiro disco é de cante e tem o nome de uma moda que se chama Semear salsa ao reguinho. Eu e o meu irmão Janita pertencemos sempre a isso, mesmo que o cante fosse uma coisa de velhos e de pobres para quem não o conhecia. O Zeca conhecia-o muito bem e dizia que o folclore mais erudito que conhecia em Portugal era o alentejano. Acho que tem razão, mesmo que eu também goste muito do transmontano.".Vai acontecer o mesmo ao cante que ao fado e aparecer gente a procurar novas tendências? "As inquisições locais não gostam nada e há alguns alentejanos que têm um diretório do cante, mas agora há muitos miúdos no Alentejo a cantar de outra maneira e o cante alentejano está a reviver de uma forma extraordinária. Deixou de ser de velhos e para velhos, de casados para casados, porque só os casados é que cantavam pois assim tinham uma desculpa para sair de casa e ir a um ensaio do grupo de cantadores.".Meter portugueses debaixo do sovaco.Apesar de o tema da conversa ser a novidade discográfica, Vitorino não deixa de falar da crise do momento: a pandemia. "Esta é uma realidade que alterou completamente as nossas vidas. O mundo e a civilização vai ser outra a partir de agora, mas parece-me que será para pior", desconfia. "Vai ser um mundo novo porque muita gente teve bastante medo, no entanto vai afetar mais a classe média e os menos protegidos", acrescenta..Além do medo, Vitorino receia o autoritarismo que se segue: "Quando param na rua os que têm 70 anos e lhes dizem "vai mas é para casa", eu estou contra. Estão a engavetar-nos e isso é ilegal pois não podem fazer guetos com os velhos. Se me obrigarem a isso, pois já estou nessa idade, eu garanto que fujo."..Considera que a realidade que o covid-19 trouxe ao mundo faz parecer as distopias de George Orwell ultrapassadas: "Lembro-me do filme Tempos Modernos de Charles Chaplin, que é rigorosamente premonitório do que está a acontecer. Agora, perdemos o poder de reagir, não temos força nem armas a não ser que haja hackers que nos salvem." Em causa está para Vitorino "o problema que é o Google, o Youtube, o Facebook ou o Spotify. A língua inglesa começou a invadir-nos nos anos 1960 e todas essas plataformas são agora lugares obscuros e sem trabalhadores regulares. O resultado é terrível para quem canta, compõe e toca, porque já não temos quem veicule os nossos conteúdos e pague o ordenado. Só com armas tecnológicas é que se poderá combater essa situação, no entanto são inalcançáveis para, por exemplo, um escritor que só tem como arma a caneta.".Nesta altura, Vitorino deveria estar em digressão com a formação Tais Quais, mas a pandemia impossibilita essa digressão de nomes como Jorge Palma, João Gil, Tim ou Celina da Piedade, entre outros. E não só, avisa, porque nas últimas semanas os artistas portugueses da sua geração perderam uma das melhores épocas para atuar: "A semana entre o 25 de Abril e o 1º de Maio é para os músicos mais velhos o seu Natal, pois tínhamos uma intervenção fortíssima. Há dois anos cheguei a fazer sete espetáculos em três dias. Era um tempo em que se criava alguma reserva de tesouraria para todos os que faziam os espetáculos.".Pergunta-se-lhe se o facto de atualmente se valorizar muito a cultura, a única distração em tempo de pandemia, continuará depois da quarentena. "É verdade, a cultura está a ser valorizada, mas apenas durante uns tempos, porque depois virão os grandes produtores do showbizz e encarregam-se dela, metendo-a outra vez debaixo do sovaco. Os grandes produtores de festivais em Portugal só querem cantores ingleses e americanos e quase nenhum português. É uma cultura de massas muito perversa, como se em português deixasse de ser interessante. Se me convidassem, até lá ia cantar! Portanto, no caso da música voltará ser abafada e metida no saco dos grandes produtores.".Vitorino vem de uma região onde há muita solidão e pouca gente. Diz-se-lhe: no Alentejo morreu menos gente com a covid-19 porque ela não existe para ser infetada. Resposta: "Não existe gente e estamos longe uns dos outros. O Alentejo vai do rio Tejo ao Vascão, um ribeiro no concelho de Almodôvar, e tem menos de um milhão de habitantes. Essa solidão tem como vantagem sermos menos para morrer, mas o que acontece lá é que o pessoal enforca-se muito e atira-se para os poços. Sobretudo os de Beja e os da minha terra; há sempre notícias dessas, de homens que se enforcam e de mulheres que se atiram para os poços."