Cannes: Zombies de Jim Jarmusch desiludem
Perante a abertura oficial do 72º Festival de Cannes, poderíamos ter utilizado aquela frase feita do mundo da política: "Estavam reunidas as condições para..." Assim mesmo: The Dead Don"t Die (à letra: Os Mortos Não Morrem) é uma história de zombies assinada pelo americano Jim Jarmusch, autor de culto e figura querida do certame desde que, em 1984, arrebatou a Câmara de Ouro (melhor primeira obra) com Stranger Than Paradise/Para Além do Paraíso.
Estavam, de facto, reunidas as condições... para que acontecesse um filme capaz de aproveitar a moda das histórias de zombies (relançada pela série televisiva The Walking Dead), reinventando-a num tom em que a paródia se confundisse com a parábola política. Até porque logo numa das primeiras cenas desta história de uma povoação esquecida dos EUA (com um nome que apela ao simbolismo: Centerville), ameaçada por uma invasão de zombies, deparamos com um delicioso detalhe, indissociável das convulsões da era Trump. Assim, a personagem interpretada por Steve Buscemi usa uma boné vermelho, típico da campanha de Trump, onde não está escrito "Make America great again" (Façam a América grande outra vez), mas sim "Make America white again" (Façam a América branca outra vez).
Que faz, então, Jarmusch? Inventa três personagens de polícias, interpretados por Bill Murray, Chloë Sevigny e Adam Driver, surpreendidos pela chegada dos "não-mortos", enfrentando de forma quase sempre desastrosa os incidentes mais ou menos brutais que se vão registando. Paródia? Talvez, parece ser esse o objetivo, mas dir-se-ia que os breves momentos de humor se esgotam em meia dúzia de anedotas, quase todas já reveladas no trailer do filme.
Nomes notáveis não faltam, desde a atriz inglesa Tilda Swinton até ao rapper americano RZA, sem esquecer Tom Waits em eremita que observa pelos seus binóculos a tragédia de Centerville, até Iggy Pop em zombie devorador que gosta de... café. O certo é que se sai de The Dead Don"t Die com a sensação de que assistimos a um ensaio falhado para um filme que não chegou a acontecer.
Dir-se-ia que a inconsistência do filme de Jarmusch ecoou a pompa algo postiça da sessão oficial da abertura. Primeiro, com o discurso rebuscado do apresentador, o ator francês Édouard Baer, confundido sensibilidade cinéfila com exaltação retórica; depois, com o presidente do júri, o mexicano Alejandro González Iñárritu, a fazer um longo discurso (também algo retórico) em espanhol, sem tradução... Faz sentido dar lugar à língua mãe de cada um dos participantes numa cerimónia deste teor, mas teria sido simpático garantir alguma forma de tradução simultânea, sobretudo para evitar os sinais de surpresa ou indiferença em vários rostos da plateia.