Cannes: 'Sorry We Missed You' ou a primeira obra-prima do festival
Saímos arrasados deste filme, o pesadelo social de Ken Loach. Sorry to Missed You é de uma precisão laminar e de um humanismo gigante, uma das grandes obras na vasta carreira do rei do realismo social britânico. Desta vez, Ken Loach leva-nos até à intimidade de uma família inglesa da New Castle dos nossos dias, um casal de trabalhadores e os seus dois filhos, uma menina de 11 anos e um rapaz adolescente.
Dia-a-dia lutam para pagar a renda e sobreviver numa espiral de dívidas. O pai está literalmente escravo do seu trabalho "freelancer" como motorista de entregas expresso. Trabalha dois turnos e é explorado pela sua empresa, enquanto a mãe tenta das 9.00 às 21.00 dar conta de um emprego como assistente ao domicílio de doentes de terceira-idade. Uma família que não tempo para estar junta e que ainda é afetada pela crise económica que "mata" grande parte da classe trabalhadora do norte de Inglaterra.
Loach compõe um retrato de família onde todo e qualquer gesto conta e em que se ergue um monumento real à tenacidade do trabalhador britânico. Nesse sentido, sem filtros, é um objeto de denúncia ao sistema de escravidão das empresas que vivem do flagelo dos trabalhadores, recusando contratos e enganando os seus empregados à base de promessas de "franchises". Mas os "franchisados" são gente que não desiste, que ama os seus filhos e que está unida, mesmo quando acontecem acidentes e o cansaço parece querer vir ao de cima.
O que é brutal e implacável nesta história é a forma como Loach lança o perfil humano das personagens. Trata-se de um jogo comovente em que as nuances do mais profundo amor paternal surgem de forma real. O realizador inglês continua a filmar toda e qualquer situação com uma tensão que nos põe literalmente "em cena". É um método que parece aqui refinado, pondo-nos no epicentro do pesadelo social, quase como um filme de terror socia
Sorry We Missed You funciona ainda como experiência do desespero humano. Fala-nos da nova escravidão humana numa Inglaterra pré- Brexit mas é vital como objeto de denúncia das políticas anti-sociais de Theresa May. Fazê-lo com uma vertigem narrativa onde não há um minuto em vão é que torna tudo ainda mais "incendiário". Loach filma o último assomo do trabalhador britânico e a sua dignidade. Se há uns anos havia anunciado que se iria reformar, um filme como este prova que a urgência deste cinema não permite baixar a guarda. Seja como for, não há lugares para otimismos e há um tom de tragédia que faz com que o sol já não brilhe lá para os lados de New Castle. Tempos terríveis estes...
Felizmente, no ACID, tivemos uma outra vertigem, a de Alain Raoust, com Rêves de Jeunesse, simpática crónica romanesca na província de Nice. Um boa surpresa que é co-produzida pela Terratreme. O cinema português já chegou a Cannes e trouxe uma luz de verão refrescante.
Tarantino vai enfurecer a imprensa de Cannes...
Nos corredores de Cannes, seja nas salas de imprensa ou ontem na festa de imprensa, todos os caminhos nas conversas vão dar a Quentin Tarantino e ao seu Era Uma Vez... em Hollywood. O filme apenas tem exibição aqui no festival na matinée de dia 21, mas o problema é que Tarantino exigiu apenas que houvesse um único visionamento. Será o único filme sem sessão extra nem repetições. A Sony e Tarantino querem uma aura de verdadeiro acontecimento. Obviamente, nem todos os acreditados vão poder ver o filme mais aguardado do festival, projetado em 35 mm. É seguro que a direção do festival vai ter de gerir protestos dos críticos que não vão caber na sala Debussy. O DN sabe também que em termos de promoção Tarantino não está muito disponível para conversar com os jornalistas, coisa em que era perito.
Bem mais acessível está a cineasta e música Laurie Anderson, presente aqui a convite da Quinzena dos Realizadores para apresentar as instalações Go Where you Look! , feitas a meias com Hsin-Chien Huabgdu. Sem vedetismos, conviveu com a imprensa num almoço oferecido à imprensa numa praia da Croisette. Anderson passou o dia a falar com os jornalistas e continua com um sorriso constante.
Por outro lado, se abrirmos as revistas da indústria e é sintomático ver os anúncios do ICA- Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal para apresentar o nosso país como destino de filmagens através de um estímulo financeiro. Os anúncios de página inteira com uma imagem do rio Douro lembram os 30% de "cash rebate" a todas produções estrangeiras que sejam rodadas no nosso país. De referir, que este fim-de-semana, há um cocktail para reforçar esta medida. Serão talvez divulgados projetos como The Legend of Sindbad , grande produção de Hollywood da Millenium, e Magalhães, de Lav Diaz, já com filmagens confirmadas em breve em Portugal. O "hashtag" criado diz em inglês diz "não é possível escapar a Portugal". 2020 será um ano em que Portugal pode vir mesmo a ser um dos "plateaux" mais procurados do cinema internacional...