Cannes descobre o futuro através de David Cronenberg
O canadiano David Cronenberg está de volta à competição do Festival de Cannes com um filme tão inclassificável quanto fascinante: seja qual for o palmarés, 2022 ficará como o ano de Crimes of the Future, um daqueles objetos que nos faz sentir que o gosto e a imaginação do cinema ainda não foram devorados pelos valores mercantis que contaminam muitas formas de produção e consumo.
Vem a propósito recordar que há uma memória atribulada na relação de Cronenberg com Cannes. Aconteceu em 1996, quando o seu prodigioso Crash não ganhou a Palma de Ouro devido à tenaz oposição do presidente do júri, Francis Ford Coppola. Quem o revelou foi o próprio Cronenberg, em 2020, por ocasião do relançamento de Crash em cópia restaurada (nunca tendo sido desmentido); o filme acabaria por obter um Prémio Especial do Júri, já que os outros jurados terão usado a prerrogativa que permite atribuir uma distinção excecional, mesmo com a oposição do presidente.
CitaçãocitacaoAssim, sem qualquer interferência humana, alguns corpos passaram a comportar-se como máquinas geradoras de...novos órgãos - no seu interior, entenda-se.
Ainda assim, saber se o júri deste ano, presidido pelo ator francês Vincent Lindon, vai consagrar Crimes of the Future é uma questão secundária (tal como, entenda-se, a legítima oposição de Coppola). O que mais conta é a sensação radical de depararmos com um objeto capaz de discutir os poderes das imagens e dos sons, em última instância questionando o significado do ato de sermos espetadores, aqui e agora.
Tudo se passa num futuro mais ou menos próximo, encenado em cenários de gigantescas construções degradadas (a rodagem decorreu na Grécia, na zona de Atenas). Dir-se-ia um futuro resultante de ruínas de meados do século XX, o que não deixa de envolver uma desconcertante "coincidência": a solidão granítica dos ambientes faz lembrar a segunda longa-metragem de Cronenberg, lançada em 1970 e também intitulada Crimes of the Future; nela se narra uma "peste" que atinge as mulheres que usaram determinados produtos de cosmética... A ação situa-se em 1997.
Seja como for, não estamos perante um remake. As personagens do novo Crimes of the Future vivem assombradas por um inusitado fenómeno, aparentemente gerado pelas componentes sintéticas das novas formas de vida. Assim, sem qualquer interferência humana, alguns corpos passaram a comportar-se como máquinas geradoras de... novos órgãos - no seu interior, entenda-se.
Por um lado, isso leva um artista como Saul Tenser (Viggo Mortensen) a montar espetáculos marginais com a sua companheira Caprice (Léa Seydoux), performances que são verdadeiras cirurgias de amostragem daquilo que está a acontecer dentro do seu corpo; por outro lado, as autoridades tentam registar e controlar o fenómeno através de burocratas como Timlin (Kristen Stewart), figura emblemática de um novo departamento oficial: o Registo Nacional de Órgãos.
Dito isto, talvez seja oportuno acrescentar que, uma vez mais, a inscrição do trabalho de Cronenberg nas rotinas do "cinema de terror" não faz qualquer sentido. Para o autor de filmes como A Mosca (1986), Irmãos Inseparáveis (1988) ou eXistenZ (1999), o que mais conta é essa noção, de uma só vez filosófica e poética, de que o corpo, sendo o instrumento visível da nossa humanidade, existe também como motor (orgânico, é caso para dizer) daquilo que abala as certezas do fator humano. Em Irmãos Inseparáveis, sobre dois gémeos ginecologistas, há uma cena em que Jeremy Irons diz que devia haver também concursos dedicados ao interior dos corpos e à beleza dos seus órgãos - pois bem, está feito!
Exibidos extracompetição, dois extraordinários documentários sobre figuras lendárias do universo musical - Jerry Lee Lewis e David Bowie - ficam também como símbolos muito fortes desta 75ª edição de Cannes. Se quisermos continuar a ser "cronenberguianos", diremos que neles assistimos a redescobertas de intérpretes cuja energia corporal, sendo um elemento espetacular, nunca é estranha a uma persistente procura e, à sua maneira, invenção de uma identidade muito própria.
Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind parece ilustrar um momentâneo "divórcio" artístico dos irmãos Coen. Lembremos que Joel Coen esteve na corrida dos últimos Óscares com a realização, a solo, de A Tragédia de Macbeth, protagonizado por Denzel Washington; agora é a vez de Ethan Coen surgir a assinar este retrato de um príncipe do rock"n"roll (isto porque, como o próprio reconhece, o lugar de rei já estava ocupado por Elvis Presley). Através de uma notável montagem, redescobrimos o fulgor de Jerry Lee Lewis e a curiosa contradição que o define: sempre se assumiu como um homem da música country, mas a sua escola foi o rock"n"roll.
Moonage Daydream tem realização de Brett Morgen, responsável pelo também magnífico Cobain: Montage of Heck (2015), sobre Kurt Cobain. O mínimo que se pode dizer é que a revisitação de David Bowie consegue a proeza de conjugar muitos inéditos e preciosos materiais de arquivo (filmes, televisão, entrevistas, etc.) com uma elaborada construção narrativa que dispensa o cliché da voz off e também a mais convencional biografia "cronológica". Trata-se de partir da criação (e desaparecimento) da personagem de Ziggy Stardust, no começo da década de 1970, para relançar as certezas e dúvidas de alguém que nunca desistiu de questionar o valor, o significado e, sobretudo, o trabalho de qualquer intervenção artística - Moonage Daydream deverá ser lançado nas salas dos EUA em setembro, chegando à HBO Max na primavera de 2023.
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