Cannes à procura da sua tradição

O maior evento cinematográfico do mundo arranca hoje com o filme <em>Coupez!, </em>de Michel Hazanavicius. Com 21 títulos a competir para a Palma de Ouro, muitas sessões especiais, as habituais secções paralelas e o gigantesco Mercado do Filme, Cannes volta a ser a montra global do presente e do futuro dos filmes.
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De que falamos quando falamos de tradição a propósito de um festival de cinema? Talvez que Cannes tenha a resposta. Ou, pelo menos, a "sua" resposta. Isto porque a 75.ª edição do Festival de Cannes arranca hoje e surge como uma espécie de resgate do tempo perdido. Afinal de contas, como aconteceu com muitos outros eventos cinematográficos, a pandemia obrigou a dois anos atípicos: em 2020 nada aconteceu, a não ser uma mini-celebração simbólica; 2021 aproximou-se da normalidade, mas surgiu em datas "alternativas", em julho.

Agora, até ao dia 28, a Côte d"Azur vai voltar a acolher o maior certame cinematográfico do mundo. A sua imponência não resulta apenas do impressionante número de títulos a ser revelados pela seleção oficial e pelos habituais acontecimentos paralelos (Quinzena dos Realizadores, Semana da Crítica, etc.), indissociáveis da história e do património do festival. Convém não esquecer que Cannes acolhe também o Mercado do Filme, evento decisivo na negociação de produtos para distribuição em todo o mundo e também para a montagem financeira de novos projetos - este ano, nesse domínio, a organização anuncia a presença de mais de 12 mil profissionais (o número de jornalistas deverá aproximar-se dos 4 mil).

Quantidade nem sempre é qualidade, mas é um facto que a organização do festival aposta numa abundância de títulos capaz de funcionar como um verdadeiro ponto da situação da produção internacional. Incluindo alguns dos filmes que irão marcar a agenda cinematográfico de todo o planeta: é o caso da nova biografia de Elvis Presley realizada por Baz Luhrmann, intitulada Elvis, com Austin Butler no papel central e Tom Hanks a interpretar o Coronel Parker; e também de Top Gun - Maverick, de Joseph Kosinzki, com Tom Cruise a retomar uma das suas personagens mais populares.

Tais ante-estreias são apenas a ponta do iceberg mediático, até porque, embora integrando a selecção oficial, surgem em diversas sessões extra-competição. Refletem, aliás, o empenho com que Cannes passou a assumir-se como montra de uma pluralidade que não exclui alguns dos grandes espetáculos do ano. Essa preocupação prolonga-se com a apresentação de vários títulos de origens muito diversas que também não concorrem para a Palma de Ouro. Este ano, entre os exemplos mais significativos estarão os novos trabalhos de George Miller (Three Thousands Years of Longing), Marco Bellocchio (Esterno Notte), Sergei Loznitsa (The Natural History of Destruction) e ainda do português Tiago Guedes (Restos do Vento), uma produção de Paulo Branco.

A abertura oficial será feita com Coupez!, de Michel Hazanavicius, também fora de competição. Escusado será dizer que as atenções se vão concentrar nos 21 filmes candidatos à Palma de Ouro, cumprindo-se a tradição de dar a ver as mais recentes realizações de cineastas que já venceram o festival. São eles, desta vez: os belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne (agora presentes com Tori et Lokita), o japonês Hirokazu Kore-eda (Broker), o romeno Cristian Mungiu (R.M.N.) e o sueco Ruben Östlund (Triangle of Sadness).

Como sempre, a representação francesa é importante, com destaque para os novos títulos de Arnaud Desplechin (Frère et Soeur) e Claire Denis (Stars at Noon), este em língua inglesa. Entre as maiores expectativas, será forçoso destacar os filmes assinados pelo canadiano David Cronenberg (Crimes of the Future), o polaco Jerzy Skolimowski (Hi-Han) e o espanhol Albert Serra (Tourment sur les Îles), este uma coprodução europeia a que está associada a empresa portuguesa Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho.

As decisões do palmarés estarão a cargo de um júri presidido por Vincent Lindon, curiosamente um "mensageiro" da edição do ano passado, já que integrava o elenco do filme vencedor, Titane, de Julia Ducournau. Desde 2009 que não havia uma personalidade francesa a comandar o júri; Isabelle Huppert foi, nesse ano, a presidente, com a Palma de Ouro a ser atribuída a O Laço Branco, de Michael Haneke. Já distinguido em Cannes - melhor ator em 2015 com A Lei do Mercado, de Stéphane Brizé -, Lindon resumiu em entrevista ao jornal Le Monde (14 maio) o seu princípio de trabalho: "Gosto dos filmes que nos dão conta do estado do mundo".

Curiosamente, no mesmo dia, o mesmo jornal publicava um artigo de Thomas Sotinel, relançando uma pergunta dramática: "O cinema está morto ou vivo?". Em discussão estão questões realmente transversais e globais que se podem resumir em três vectores: a transferência de muitos espectadores para as plataformas de streaming, os efeitos brutais da pandemia na frequência das salas e, por fim, a procura de novas estratégias para recuperar o público dessas mesmas salas.

O realizador francês Olivier Assayas, uma das personalidades citadas no artigo, reconhece que "o público do cinema independente envelheceu". Ironicamente (ou talvez não...), Assayas é um dos autores que vai estar no festival com um produto híbrido. A saber: a série Irma Vep (HBO), inspirada no seu filme homónimo de 1996. Dir-se-ia que Cannes vai ser também um panorama sugestivo e, em boa verdade, sem preconceitos desta paisagem de inusitados contrastes e complementaridades. Quem quiser especular sobre o perverso simbolismo de tudo isto, poderá mesmo começar pelo facto de o filme de abertura, Coupez!, se anunciar como... uma comédia de zombies.

* VINCENT LINDON
(ator - França / presidente)

* REBECCA HALL
(atriz, realizadora - EUA)

* DEEPIKA PADUKONE
(atriz, produtora - Índia)

* NOOMI RAPACE
(atriz - Suécia)

* JASMINE TRINCA
(atriz, realizadora - Itália)

* ASGHAR FARHADI
(realizador, produtor - Irão)

* LADJ LY
(realizador, ator - França)

* JEFF NICHOLS
(realizador, argumentista - EUA)

* JOACHIM TRIER
(realizador, argumentista - Noruega)

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