Pedro Andrade fuma todos os dias entre dois a três gramas de canábis sob a forma de flor desidratada. Fá-lo para obter alívio para a espasticidade, uma condição que se consubstancia em espasmos e rigidez muscular e que se deve ao facto de ter ficado, há 12 anos, paraplégico devido a um acidente de moto..A espasticidade de que Pedro, 39 anos, sofre devido às lesões sofridas na espinal medula faz parte da lista de indicações para o uso terapêutico de canábis que o Infarmed publicou em fevereiro, no âmbito da regulamentação da lei aprovada em junho do parlamento, pelo que todas as condições estão reunidas para poder ter acesso legal às "erva" ou "marijuana"..Mas nem há canábis à venda no mercado legal nem o fumar é aprovado pelo Infarmed como forma de posologia. Em resposta ao DN, o regulador do medicamento explica que "não está previsto o recurso a cigarros de canábis para fins médicos, principalmente porque inalar o fumo proveniente de material vegetal sujeito a um processo de combustão coloca problemas de saúde devido à formação de compostos possivelmente carcinogénicos (por exemplo, hidrocarbonetos policíclicos aromáticos), sendo igualmente difícil o controlo correto da dose utilizada.".A imagem, popularizada por séries americanas, de pacientes de cancro, esclerose múltipla ou outras afeções incluídas na lista oficial das indicações para o uso terapêutico, a fumar canábis, estará pois para o Infarmed arredada da realidade portuguesa. Contraditoriamente, Pedro vê lógica na decisão: "Não há nenhum médico que preconize o fumo. Deve-se fazer antes vaporização. Comprei um vaporizador até, custou-me 500 euros, mas não o uso porque sou mau paciente, facilito." Ri. "É que como fumo tabaco acabo por fumar também a erva.".Mas quer a afirmação de Pedro quer a posição do Infarmed colidem com a prática em alguns países. Nos EUA e Canadá a via do fumo é admitida no uso terapêutico e o mesmo sucede em Israel. Este foi dos primeiros países fora da América do Norte a permitir o uso terapêutico da canábis e em 2013 tinha, de acordo com o respetivo ministério da Saúde, 8713 pacientes a usar canábis terapêutica nas suas diversas formas..Croácia comparticipa marijuana.Já na Europa, no número crescente de países que legalizaram a canábis terapêutica não há, de acordo com um relatório de dezembro de 2018 do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), um único que permita a via fumada, embora em vários haja prescrição de flores desidratadas. Caso da Croácia, da República Checa e da Holanda..Na Holanda, é desde 2003 permitido aos médicos prescrever a planta para doentes com cancro, infeção por VIH e síndroma de Tourette, assim como no alívio da dor; na Croácia, cuja lei que permite o uso terapêutico de canábis tem quatro anos, até 2017 um médico de clínica geral podia receitar desde que houvesse uma indicação prévia de um neurologista, um especialista em cancro ou um infecciologista..A partir dessa data, a prescrição, no caso de pacientes com os quais todas as terapêuticas falharam, não está limitada a certos especialistas nem tem uma lista de indicações fixa: pode ser feita para qualquer doença que ponha a vida em perigo ou que afete muito a qualidade de vida do paciente, inclui as flores desidratadas e tendo um limite de 100 gramas por mês. Ao contrário do que se passa em Israel, por exemplo, onde a canábis não é comparticipada e custa cerca de três euros o grama, na Croácia as companhias de seguros devem cobrir o custo no caso de doentes crónicos ou terminais..Também na República Checa, que desde 2013 permite a canábis terapêutica para um conjunto de doenças que inclui, além do cancro e da esclerose múltipla, a psoríase e a doença de Parkinson, a planta pode ser prescrita. Mas há uma lista de médicos que podem prescrever (57 segundo o OEDT) e só 41 farmácias têm o produto. O preço é de 3,70/grama e a quantidade máxima mensal permitida é de 180 gramas. Não há comparticipação nem cobertura pelos seguros..Regulamentação portuguesa pouco clara.Em Portugal, apesar de a lei prever a possibilidade de uso das "folhas e sumidades floridas ou frutificadas da planta", a regulamentação não inclui nenhum limite diário ou mensal para a prescrição dessas partes da planta nem existe qualquer indicação sobre possibilidade de comparticipação ou de cobertura pelos seguros de saúde..Aliás, lendo a regulamentação e atentando às respostas do Infarmed às perguntas do DN, é difícil perceber como se poderá dar a colocação nas farmácias de partes da planta: o regulador fala de todos os produtos à base de canábis como se de medicamentos convencionais e de um mercado comercial normal se tratasse.."Para que as preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais possam ser comercializadas", diz o Infarmed, "é necessário que haja empresas interessadas na sua produção/comercialização pelo que, as mesmas deverão apresentar um pedido de autorização de colocação no mercado (ACM) ao Infarmed.".Apesar de estar previsto na lei que o laboratório do Exército possa produzir e preparar as ditas "preparações e substâncias à base da planta", até agora não há qualquer informação sobre como tal se processará (o DN tentou, sem sucesso, obter esclarecimentos do Exército)..E se, como frisa o citado relatório do OEDT, há poucos países europeus que permitam o uso da planta em si para efeitos médicos, naqueles em que tal é possível o Estado tem um papel ativo na disponibilização da planta..Governo italiano produz canábis.Na República Checa, começou por existir uma importação de uma empresa holandesa, a Bedrocan, mas entretanto uma empresa local começou a produzir em regime de monopólio e a fornecer vários tipos de canábis ao Estado, que se encarrega da distribuição. A primeira colheita local chegou às farmácias em março de 2016..Na Holanda é a dita Bedrocan que tem licença para produzir a canábis terapêutica. Fabrica cinco produtos diferentes, com graus variados de THC (tetraidrocanabinol, a componente estupefaciente da canábis) e CBD (canabidiol - sem efeito estupefaciente), sob a forma de flores secas e granulado..Na Croácia a canábis começou por ser fornecida pela companhia canadiana Tilray (que obteve em 2017 licença para cultivar canábis em Portugal, tendo-se estabelecido em Cantanhede), mas entretanto o governo criou uma agência para a canábis e esta lançou um concurso nacional para a produção de duas toneladas da planta..Também em Itália, onde se estima que 9 mil a 10 mil pacientes usam canábis medicinal, após um período em que se importava à empresa holandesa Bedrocan, iniciou-se, em 2014, a produção nacional numa instalação estatal e sob a supervisão do ministério da Saúde. A canábis italiana chegou aos pacientes em 2016..Outro país que criou uma agência estatal para a canábis foi Israel. É essa agência que, à semelhança do Infarmed, atribui licenças de cultivo e produção - em Fevereiro de 2018, havia nove produtores licenciados no país , que até 2016 vendiam a canábis, sob a forma de óleo ou se flores secas, diretamente aos pacientes. A partir desse ano, os produtos passaram a ser vendidos em farmácias.."Não pode haver lei e ficar tudo na mesma".Em Portugal, nada mexe: até agora, não houve qualquer pedido de Autorização de Colocação no Mercado para produtos de canábis. Isso mesmo aponta o médico e deputado social-democrata Ricardo Baptista Leite e porta-voz do PSD para a saúde.."A Assembleia da República fez o seu trabalho, agora o Infarmed tem de fazer o seu", diz o social democrata. "E a regulamentação que o Infarmed fez é de tal modo restritiva que não dá condições para que haja interesse do mercado. Perante essa manifesta ausência de interesse do mercado têm de ser discutidas vias alternativas. É uma nova fase da discussão.".Mas para isso, frisa, "é preciso que o Infarmed assuma de forma clara e taxativa que não há da parte do setor privado interesse em comercializar estes produtos, e que da parte do Estado haja uma disponibilidade para resolver. O que não é aceitável, a meu ver, é que depois de todo este esforço para legislar fique tudo na mesma.".Mas tudo na mesma é como está, para Pedro Andrade. "No imediato para mim é como se a lei não existisse. Claro que posso seguir o caminho normal e encontrar um médico que me prescreva canábis, o que no meu caso particular não seria muito difícil - espasticidade, o que tenho, está na lista do Infarmed como fazendo parte das indicações terapêuticas - mas não há nada à venda no mercado legal. Portanto continuo a fazer o que fazia antes, arrisco na ilegalidade. É aquilo a que todos os pacientes estão sujeitos: a desenrascar-se.".E Pedro desenrasca-se: dedica-se ao autocultivo. A coisa fica-lhe, estima, nuns 200 euros mensais, menos ainda assim do que se comprasse no mercado negro, onde a canábis custará de seis a 10 euros o grama..Para alguém como Pedro, as opções que há neste momento, apesar da lei em vigor, são só essas: mercado negro ou autocultivo. Ou seja, escolher entre um crime e outro. Sendo um dos rostos que surgiram nos últimos anos, em reportagens e audições públicas, na defesa da aprovação da canábis, Paulo tem um riso algo amargo na voz quando admite que o seu caso não terá tão depressa resposta legal..O que para ele não é uma opção, porém, é deixar de usar canábis. Soube das potencialidades terapêuticas da planta "quando ainda estava na cama do hospital, pelos médicos. Como tinha consumido recreativamente até aos 24 ou 25 anos, pensei: que ironia, uma coisa que deixei." Mal saiu do hospital quis experimentar: "Estava há um ano a tomar cocktails medicamentosos, já estava na dose máxima, e comecei a usar a canábis. Disse aos médicos e eles foram cortando as pastilhas." Até não tomar nada para espasticidade: só precisa de medicamentos para a bexiga e intestinos..Mas é um risco, claro. "Se tenho medo de ter uma rusga em casa? Tenho. Que me venham bater à porta com um mandado judicial. É uma hipótese que tenho em cima da mesa. Porque de alguma forma o que fiz foi auto-denúncia, quando assumi publicamente que uso canábis e faço auto-cultivo. A única coisa que posso fazer se aparecer a polícia é ligar para os jornalistas para me ajudarem."