Quando em junho de 2018 a Assembleia da República aprovou a lei que regulamenta a utilização de canábis medicinal, Carla Dias já começara a testar na filha um suplemento que garante ter-lhe mudado a vida. A pequena Isa tem agora 3 anos, mas desde os 10 meses que vive com lesões cerebrais e epilepsia provocadas por uma síndrome rara. Carla não imaginava então que, menos de um ano depois, seria ela a presidente do Observatório Português de Canábis Medicinal..Nessa altura começava a notar as diferenças na filha, que passou de um quadro de quatro ou cinco crises diárias para períodos de 15 dias "sem uma única crise". Tinha encontrado alternativas à medicação que a filha tomava, e que já não estava a dar resposta a uma encefalopatia. Meses antes, assistira na TV a um programa em que ouviu falar pela primeira vez dos canabinoides e dos benefícios comprovados em várias patologias. Nessa altura ainda os suplementos alimentares à base de canabidiol eram livremente vendidos em ervanárias e outras lojas..Mas, ironicamente, a aprovação da lei que aconteceu entretanto acabaria por retirá-los do mercado. "A lei veio dizer que os suplementos à base de plantas canábis tinham propriedades terapêuticas, e como tal necessitavam de uma ACM (autorização de colocação no mercado)", conta ao DN Carla Dias, inconformada com o paradoxo: a partir do momento em que foi aprovada a utilização de canábis medicinal, parece ter havido um retrocesso. "A lei nunca saiu do papel." Ela, como tantos outros portugueses, passaram a adquirir os mesmos suplementos através da internet, uma vez retirados das lojas..No caso do suplemento alimentar que administra à filha, custa-lhe cerca de 75 euros e dá para um mês. Há outros, de valores diferentes. Em Portugal, existem apenas dois medicamentos disponíveis no mercado, sendo Sativex (para a esclerose múltipla) o mais conhecido, "que custa mais de 300 euros e que muito poucos médicos podem ou querem prescrever", diz ao DN Laura Ramos, da organização da segunda conferência internacional sobre canábis medicinal, que decorre hoje e amanhã em Lisboa, e no Porto a 22 e 23 deste mês. ."O que pretendemos é divulgar informação e dar formação sobre as propriedades medicinais da canábis, com especial enfoque nos pacientes, profissionais de saúde e indústria da canábis medicinal. Teremos também consultas abertas com os médicos do Congresso, gratuitas para pacientes inscritos na conferência", acrescenta Laura Ramos, uma jornalista que tem passado os últimos anos dedicada a esta causa. Era ela que falava na TV quando Carla Dias descobriu este universo da canábis medicinal. Da pesquisa que foi fazendo ao longo dos anos está convicta das vantagens sobre os fármacos convencionais, mas adverte ser importante "que um médico avalie sempre cada caso", embora alguns ensaios clínicos "já tenham comprovado os benefícios dos canabinoides em várias patologias com menores efeitos adversos quando comparados com outros medicamentos"..Na conferência vão estar médicos e investigadores prontos a explicar o sistema endocanabinóide, comum a todos os humanos, e apresentar evidências em áreas como o cancro da mama, glioblastoma, autismo, epilepsia, neuroproteção, adição, entre outras. Uma delas é Cristina Sanchez, da Universidade Complutense de Madrid, dedicada à bioquímica e biologia molecular..Para esta investigadora, "há evidências pré-clínicas que mostram que os canabinoides matam células cancerígenas sem afetar a viabilidade de células não cancerígenas, tanto em culturas celulares quanto em modelos animais de câncer de mama", tal como avançou ao DN, em entrevista por e-mail. "Além disso, nesses modelos animais, foi demonstrado que os canabinoides inibem a angiogénese (a geração de vasos sanguíneos para alimentar os crescentes mastros tumorais) e as metástases", acrescenta..O que falta para comercializar.Mas o que falta, afinal, para que os medicamentos à base de canábis sejam comercializados em Portugal? Foram muito poucas as empresas que, desde a regulamentação da canábis medicinal, em janeiro de 2019, pediram autorizações de colocação no mercado ao Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde..Ao que o DN soube, serão apenas quatro. "Isso revela, de certa maneira, o desinteresse por parte das empresas, que já vendem os produtos através da Internet", considera Laura Ramos, que aponta ainda outro problema: "a falta de abertura ou informação dos profissionais de saúde na prescrição, e o preconceito que ainda existe na sociedade em relação à canábis. É por isso muito importante investir na literacia do público em geral e na formação de profissionais especializados nesta área da saúde", conclui..Atualmente existem apenas dois medicamentos contendo na sua composição extratos/ preparações de Cannabis sativa aprovados, o Sativex e o Epidiolex. Ambos os medicamentos foram aprovados ao abrigo de legislação do medicamento. O primeiro é prescrito para aliviar a rigidez muscular associada à esclerose múltipla, o segundo é remédio indicado para o tratamento de convulsões associadas à síndrome de Lennox-Gastaut ou síndrome de Dravet, em pessoas com mais de 2 anos..Desde a aprovação da Lei n.º 33/2018, foi submetido ao Infarmed apenas "um pedido para a colocação no mercado de uma preparação à base da planta da canábis que se encontra em avaliação, aguardando-se resposta a pedido de elementos da parte do Infarmed", garantiu ao DN o gabinete de imprensa daquela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde.."A competência do Infarmed é garantir que os medicamentos, preparações ou substâncias à base da planta da canábis, quando autorizados pelo Infarmed, cumprem com todos os requisitos legais, nomeadamente a demonstração da sua qualidade, eficácia e segurança", acrescenta em resposta enviada ao DN..Maior empresa de canábis exporta a partir de Cantanhede.O grupo canadiano Tilray inaugurou em abril deste ano em Cantanhede o Campus EU, uma unidade de produção multifacetada que inclui locais de cultivo internos, ao ar livre e em estufa, bem como laboratórios de pesquisa, processamento, embalagem e distribuição de canábis medicinal e produtos médicos derivados de canabinoides. Na altura, a empresa chamou jornalistas, governantes e outros responsáveis - como Maria do Céu Machado, presidente do Infarmed - para mostrar aquele espaço onde investiu, até agora, cerca de 20 milhões de euros nas instalações. Falamos de um espaço com uma dimensão de cerca de 250 mil pés quadrados (cerca de cinco hectares), dispondo ainda de espaço adicional para expansão. A Tilray celebrou entretanto um acordo vinculativo com o Esporão, adicionando à sua área de cultivo mais 20 hectares de espaço de cultivo ao ar livre no Alentejo..De acordo com informações disponibilizadas ao DN pela empresa Tilray, o Campus "serve também como centro de apoio aos esforços de pesquisa clínica e desenvolvimento de produtos da Tilray em toda a Europa". Atualmente, a Tilray emprega em Portugal aproximadamente 200 profissionais; paga acima da média..Em maio, pouco depois de abrir o complexo de Cantanhede, a Tilray Portugal "recebeu uma licença de produção padrão e uma certificação de boas práticas de produção (GMP na sigla em inglês), de acordo com os padrões da Agência Europeia do Medicamento (EMA), para as suas instalações de produção em Cantanhede, o que permite à empresa produzir e exportar canábis seca com a certificação GMP como substância ativa para medicamentos"..E assim responde atualmente a dezenas de milhares de doentes e consumidores em 13 países de cinco continentes. Para a Europa já exporta canábis medicinal a partir do Canadá para Croácia, Chipre, República Checa, Irlanda, Reino Unido e Alemanha. Fora da Europa, exportamos para a Austrália, Nova Zelândia, Chile e África do Sul. Estes - e especialmente os países europeus - são os principais mercados do Campus em Portugal..Em agosto anunciou o acordo de exportação do primeiro carregamento de produtos de canábis medicinal a partir do campus em Portugal para a Alemanha, que foi expedido logo em setembro..E Portugal? "Esperamos fornecer canábis medicinal a Portugal, bem como a outros países, num futuro próximo, sempre que a legislação assim o permitir", limitou-se a dizer ao DN o gabinete de comunicação da Tilray, que planeia entrar em mercados na Europa que legalmente autorizem a canábis medicinal e para responder ao mercado da canábis medicinal, à medida que o mesmo vai crescendo. "Somos encorajados pelos progressos que vamos assistindo na Europa. Estamos no meio de uma mudança de paradigma a nível global e prevemos que o número de mercados onde a canábis medicinal será permitida irá duplicar ou triplicar nos próximos cinco anos.".Além da Tilray encontram-se licenciadas mais quatro entidades para o exercício de atividades relacionadas com a canábis para fins medicinais.."A realidade em Portugal é que os pacientes continuam a recorrer ao mercado informal que existe na internet, mais de um ano depois da aprovação da Lei 33/2018, sem qualquer garantia de controlo ou segurança", sublinha Laura Ramos. Depois da regulamentação da Lei, "falta ainda publicar uma portaria assinada por vários ministérios, que deverá regulamentar aspetos relacionados com a produção e distribuição de medicamentos à base de canábis". A organizadora da conferência que vai debater muitos destes assuntos, nos próximos dois dias, considera que "os pacientes estão confusos com o mercado paralelo de suplementos alimentares à venda em farmácias e ervanárias como canábis, mas que são apenas óleos de sementes de cânhamo, sem canabinoides. Falta, portanto, formação dos profissionais de saúde, para que possam acompanhar os pacientes, e informação por parte da sociedade em geral no que respeita às propriedades terapêuticas desta planta"..Esperam-se cerca de 500 participantes de 20 nacionalidades diferentes no congresso. A Ordem dos Farmacêuticos inscreveu vários profissionais, já a dos médicos preferiu manter-se de fora, pelo menos até ao fecho das inscrições, na quarta-feira.