"Não quero ouvir Mick Jagger a cantar o 'Malhão' ou Bob Dylan o 'Tenho Dois Amores'"

"Todos os dias nasce uma fadista, mas nem toda a gente é fadista", diz um dos maiores intérpretes do fado em Portugal nesta grande entrevista. A história de Camané, passado, presente e futuro. <em>Entrevista publicada originariamente a 1 de agosto de 2019., republicada numa série de 'best of' entrevistas de verão que o DN está a republicar.</em>
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Há menos de uma semana, Camané subiu ao palco da Gulbenkian e, acompanhado da orquestra sinfónica da fundação e dos guitarristas que o acompanham, demonstrou porque é considerado um dos principais fadistas portugueses. Durante quase duas horas, desfilou um repertório excecional e obrigou as mais de mil pessoas que encheram o grande auditório a pôr-se de pé e a pedir que regressasse ao palco meia dúzia de vezes. Uma atuação e uma voz que não deixam ninguém indiferente, de norte a sul do país e em frequentes deslocações ao estrangeiro.

Durante esta conversa, Camané cantou em francês, recordou a sua juventude militante em relação ao fado e comentou a irrupção de novos fadistas em poucas palavras: "Todos os dias nasce uma fadista, mas nem toda a gente é fadista." Ou: "Há gente nova com imenso talento e outros que estão no fado só para serem famosos."

Do passado recordou também a influência do bisavô, do avô e do pai na dedicação ao fado. Do bisavô gravou um fado: "Ele fez um fado tradicional. Um dia disse o nome dele num programa de televisão e fui surpreendido por um colecionador dos Estados Unidos que tinha um disco seu. Consegui ouvir a voz do meu bisavô." Depois, adaptou esse fado a um poema de Fernando Pessoa, poeta de quem já gravou ao longo do seu percurso "uns doze fados", porque Pessoa "tem um gosto popular muito bom e uma forma simples de escrever, como é o caso das quadras".

A busca de poemas de autores como Pessoa para os seus fados é uma constante. "Tenho tido o cuidado de procurar coisas dele, de Teixeira de Pascoaes, Camões, Pedro Homem de Mello, Alexandre O'Neill ou David Mourão-Ferreira." Deste último poeta gravou por exemplo Casa, que já Amália cantara em parte. Aliás, a fadista foi fundamental para que Camané gravasse um disco numa grande editora: "Em 1993, ligou para o David Ferreira (da EMI) e disse: 'Aquele rapaz está no bom caminho'", bem como Carlos do Carmo: "Ele não gostava de ouvir crianças a cantar fado, mas dizia que eu era diferente."

No Facebook tem a fotografia de uma multidão a encher a Rua Garrett, em Lisboa, para ouvir o seu disco com fados de Alfredo Marceneiro. Qual é a sensação de estar na rua a cantar para todo o tipo de gente?
É uma sensação fantástica, pararam o trânsito por causa dessa multidão e, mesmo que o momento que antecede seja de algum medo, diria mesmo bastante medo, o mais importante era o orgulho de estar a cantar o fado que ouvi primeiro na vida - do Marceneiro -, com aquela música e poemas incríveis de poetas populares da altura a quem nunca deram o valor exato.

Diz que tem medo, mas ainda não está suficientemente rodado?
Sim, mas só quando começo a cantar é que consigo sair de mim e dos meus fantasmas e entro para dentro do que estou a cantar. Tal como no teatro, a palavra é muito importante no fado, e isso faz que me esqueça de mim e consiga contar a história. Só nesse momento ultrapasso o medo.

Essas letras não estão desfasadas do que se quer nos tempos atuais?
Tive o cuidado de escolher para o disco do Marceneiro certas letras, além de que ele foi-se renovando e não era só fados tradicionais. Cantava o Fado Cravo com três letras diferentes, por exemplo. Alguns desses fados transportam-nos para uma vivência em tempos que já não vivemos, como as histórias das pessoas que vinham da aldeia para a cidade, mas são as que hoje emigram. Está lá tudo, e quem os ouve faz uma interpretação atualizada. Todos os fados dele têm histórias do quotidiano que fazem um retrato fantástico das vivências pessoais, umas vezes até muito introspetivas. Por isso é que toda a vida cantei Marceneiro e todos os grandes fadistas também cantaram esses fados com letras diferentes.

O que o faz diferente no fado?
... É preciso cantar com alma, sentir e encontrar um registo emocional. O tempo da palavra é importante mas tem de se o fazer sem exibição, encontrar a forma de contar a história com aquela música. Tudo é importante nesse momento e nunca pode haver alguma coisa que se sobreponha ao que se está a fazer. Principalmente, evitar exibir-se vocalmente quando se diz uma frase, o que é preciso é ser-se o mais verdadeiro possível.

Costumam perguntar-lhe quem era Marceneiro?
Os fados não são para os percebermos logo, é para se sentirem primeiro. Como diz o Pessoa: a poesia não é para se perceber, mas para se ir percebendo. Musicalmente, as pessoas identificam-se com aquelas histórias [de Marceneiro] e as letras são muito atuais. Aquilo era uma coisa fantástica e a colocação da voz era como quando ouvi os primeiros fadistas ao vivo - Amália, Carlos do Carmo, Teresa Tarouca e toda a gente que faz parte da história do fado. Ouvia-os e era capaz de visualizar o espaço, o tempo e os sentimentos de tudo o que lá está escrito. É o mesmo que ouvir músicas antigas com as quais existe identificação e prazer. Lembro-me de ter 8 anos e ouvir o Charles Aznavour, o Sinatra ou os Beatles, e adorava-os mesmo que nada percebesse do que estava a ouvir.

Ainda existem fadistas antigos sobre os quais não descobriu o suficiente?
Há sempre coisas diferentes a acontecer. Há alguns, anos lembrei-me de ouvir um disco da Teresa Tarouca e fiquei fascinado. Estava numa varanda e havia pessoas mais velhas por perto que choraram porque ela tinha uma tristeza boa no seu cantar. É extraordinária, é a Billie Holiday, é fora do normal. Ainda pedi desculpa aos meus vizinhos, mas eles disseram-me: "O menino continue!" Ainda hoje isso me dá um arrepio muito grande, até porque o preconceito de que o fado é triste está errado. Se pensarmos num livro, quando se lê O Adeus às Armas, do Hemingway, em que toda a gente morre, contudo o romance não deixa de ser fantástico. Nós não temos esse dramatismo no fado, é mais contido e subtil.

A plateia já o emocionou o suficiente para ter dificuldade em continuar a cantar?
Nunca interrompo... consigo emocionar-me de maneira a que não ponha em causa o espetáculo. A ideia é estar em comunicação permanente com o público através do que estou a fazer; é evidente que há emoção, mas agrada-me passar para as pessoas as histórias das músicas, que se revejam no que estão a ouvir e, acima de tudo, tenham prazer. O fado tem uma tristeza que nos faz sorrir e uma alegria que nos faz chorar. É como toda a música do mundo, diferente conforme o modo como os fadistas cantam e, embora todos diferentes, têm muitas coisas em comum. Tem que ver com a autenticidade. Há quem me pergunte sobre certos textos, mas a maioria identifica-se e reconhece o que estou a cantar. Quando não percebem, sentem, por isso é que nos espetáculos lá fora, mesmo não percebendo o que estão a ouvir, o fado passa. A música tem essa capacidade de ultrapassar a barreira da língua. Recentemente, em Copenhaga, com o Mário Laginha, foram duas horas de silêncio total. Ouvia o respirar das pessoas durante todo o concerto.

Só batem palmas...
A minha música vive muito desses silêncios, é fado sempre, e a maior parte do que ouvimos em músicas que vêm de fora nem percebemos logo. Ainda me lembro de quando éramos miúdos e íamos para as matinés do 2001 [a discoteca] e ouvíamos os Pink Floyd; quando chegava o refrão Hey teacher [álbum The Wall] todos curtiam a música, mas a maioria não sabia cantar a letra corretamente, porque não se falava inglês tão bem como hoje.

Como conseguiu fugir à influência da música pop?
Na altura em que comecei a ouvir fado os Beatles já tinham acabado, só em Portugal é que ainda não, a minha tia tinha os discos deles todos. Mas o fado aconteceu por acaso, o meu bisavô e avô cantavam fado e o meu pai trauteava-o muito em casa e tinha uma coleção de discos de fado enorme. Nessa altura, estive doente com uma hepatite que apanhei na escola aos 7 anos, três semanas em casa, e só tinha quatro discos de outras músicas em casa: Sinatra a cantar Strangers in the Night e My Way, o Charles Aznavour em Mourir d'Aimer e Non, Je N'ai Rien Oublié e havia os Beatles com Oh! Darling e Don't Let Me Down. Ouvi aqueles discos compulsivamente até ter passado para fado. Era muito esquisito ouvir Marceneiro e Amália, era diferente, mas a verdade é que aquilo começou a entrar em mim e, de uma forma incrível, fez-me perceber a dinâmica dos fados tradicionais. Tanto que aos 9 anos sabia os fados todos - o meu pai dizia um e eu cantava. Entretanto, ia construindo os meus fados com essas músicas e o que ouvia em coletividades, porque é o mesmo de quem pega nos blues ou flamencos e faz letras novas. Era o que todos os fadistas faziam. A Amália cantava o Bailado, o Marceneiro, o Carlos do Carmo, o Rodrigo, o João Braga, todos cantavam o Bailado mas com letras diferentes. Ninguém se repetia, todos tinham uma história diferente para contar e eram muito bem escritas. Eu não ia cantar essas letras, cantava uma coisa a falar da escola ou da namorada e fazia as minhas próprias canções. Foi muito importante não cantar os fados dos adultos como eles.

E o confronto com o público acontece quando?
Comigo aconteceu aos 10 anos. Ao fim de semana, o meu pai levava-me às casas de fado em Cascais e tinha uma sorte dos diabos porque via lá o Manuel de Almeida, a Tarouca, o Rodrigo ou o João Braga. Uma vez cheguei a ir ao Faia ouvir o Carlos do Carmo e tive sorte porque o guitarrista perguntou se eu não queria cantar. Disse que sim, mas o Carlos tem de me ouvir. Ele não gostava de ouvir crianças a cantar fado, mas dizia que eu era diferente. A partir daí fiquei muito amigo dele. Lembro-me de ir ao Sr. Vinho ouvir a Maria da Fé quando era miúdo e aqueles guitarristas espetaculares que tocavam lá. Mais tarde, aos 17 anos, quando comecei a cantar profissionalmente, tive a sorte de apanhar esses guitarristas.

Quando se soube que Carlos do Carmo ia despedir-se dos palcos sentiu um baque?
Sim, deu, mas é a sua opção. Ele sempre foi um artista fora do normal. Quando o ouvi pela primeira vez percebi que era uma forma completamente nova de cantar fado. E tem uma forma de cantar, um percurso, uma obra, até parece que são várias pessoas. Há o lado dele do tradicional ou o da busca do contacto com outros artistas. Esses é que são os grandes artistas, os que se desdobram. Eu nunca tinha ouvido cantar fado com tanto swing, parecia que brincava com a música e tinha a preocupação de fazer discos bem produzidos. Ele deixa de cantar, é verdade, mas tenho sempre os discos para ouvir.

Falando de produção dos discos. Toma conta de tudo ou distribui tarefas?
Tive uma sorte enorme desde o princípio porque encontrei o Zé Mário (José Mário Branco). A Manuela de Freitas (letrista) ir ouvir-me ao Faia - ela chegava à hora de eu cantar com uma amiga e fumavam cachimbo - e numa dessas noites levou o Zé Mário para assistir à minha atuação. Mais tarde, quando fui fazer as matinés de fado no teatro A Comuna, ele foi assistir e pedi-lhe que produzisse o meu disco. Ele disse que sim e começámos a pensar nisso. Quando tive um convite da EMI, disse que tinha um produtor. Que queria que a música acompanhasse o registo emocional porque o fado vive de silêncios e que os arranjos fossem diferentes do que estava a sair nessa época - os discos eram quase todos iguais.

Fazer coisas diferentes não levou o fado a um exagero na atualidade?
Hoje não há preconceito contra o fado como antigamente. Em relação ao que se faz hoje no fado pode dizer-se que há de tudo: coisas que são fado e outras que não. Porque o fado está na moda e toda a gente o quer cantar fado. Todos os dias nasce uma fadista nova, no entanto nem toda a gente é fadista. Isso tem que ver com certas características, daí que se faça muito fado que não é autêntico a par de coisas muito boas. O que fica é a verdade, mas isso aconteceu em todas as fases do fado. Se olharmos para os anos 1960, também havia muita coisa que não tinha qualidade e que não ficou. Talvez eu conheça essas coisas melhor porque vivi no meio do fado, por isso sei que o que ficou foi muito pouco. O fado é uma coisa para a vida e não se esgota de um dia para o outro. O fado é uma vida até se o poder cantar. Chegará uma altura em que se diz: já chega. Fazer mais alguns espetáculos e deixar de ir para a estrada porque se está cansado. É isso que eu quero, coisas que não são fado, antes formas de entoar. E há outras que são mais uma forma de exibição, de dizer o texto e contar a história a fazer altos e baixos - isso não é verdade, porque nunca existiu no fado. O sentido da palavra, a interpretação, o fraseado e a expressão é que conta. Existem guitarristas que possuem muita técnica mas a quem falta o lado expressivo da guitarra portuguesa. Contudo, há coisas boas, gente nova com imenso talento e a fazer bons projetos; outros que estão no fado só para serem famosos. É o mesmo que um ator ir para o teatro para fazer telenovelas, os bons atores querem mesmo é fazer teatro. É como em tudo, como o fado funciona lá fora, pega-se numa guitarra portuguesa e já está.

Nunca pensou escrever as suas letras?
Nunca, não tenho dom para escrever. Às vezes componho uma música, vêm-me ideias à cabeça, mas nunca arrisquei. Creio que o farei alguma vez, não duvido, e até vou gravando essas ideias. Em relação a letras não, procuro cantar o que gosto e tenho uma série de pessoas que escrevem para mim.

São letras a pensar em si?
Algumas sim. Tenho tido o cuidado de procurar textos diferentes. Tive a sorte de poder cantar fados não tradicionais do Nicholas Oulman, que gostou da minha forma de estar no fado e ofereceu-me inéditos do pai [Alain Oulman] com poemas poemas do Pedro Homem de Mello ou da Cecília Meireles. Ele fez coisas fabulosas e um dos melhores discos da música portuguesa, que está muito para lá do fado, o Com Que Voz, da Amália. Como o Homem na Cidade, do Carlos do Carmo.

Há um retrato público de si. Gosta dele ou preferia uma imagem diferente?
Não posso controlar a imagem que as pessoas têm de mim. Gostava que percebessem da melhor maneira o que faço, mas acho que esse retrato se vai descobrindo. Ainda está por se fazer, porque para mim o melhor ainda está para vir, além de que as pessoas também vão mudando a imagem que têm de mim e da forma como me ouvem. Isso não se fixa, o que posso é fazer o meu trabalho.

Há um denominador comum, o de ser muito certinho no fado e no seu estilo?
A minha forma de estar no fado é de dentro para fora e não ao contrário. Só um fadista com uma determinada característica pode fazer evoluir o fado e não alguém que vem de fora e tem uma maneira de entoar que não é fado. E há outra coisa de que não gosto no fado que é assemelhar-se à música ligeira. Não gosto de aligeirar a minha música porque detesto fazer uma cançãozinha, esse é o lado mais piroso do que chamam mudar. Sou contra a ligeireza e a falta de profundidade. Isso não é nada, afinal não se pode ir a um concerto de música clássica e ter as pessoas todas a dançar e a cantar. Não contem comigo.

É o que André Rieu veio fazer recentemente a Portugal e encheu sete arenas.
Estamos a falar de músicos muito bons... mas com aquela disponibilidade toda não pode haver concentração. Não quero ouvir o Mick Jagger a cantar o Malhão ou o Bob Dylan o Tenho Dois Amores. E eu adoro a voz do Marco Paulo porque é genuína. O Pavarotti cantou um fado, mas aquilo não é fado, as pessoas tem de perceber isso. Eles cantam fado, é muito engraçado, mas não deixa de ser um fado na voz daquela pessoa. Fado é outra coisa e é preciso percebê-lo. É mais uma simpatia para o público, que também faço quando vou para fora de Portugal e canto uma música em francês. Ainda há dias cantei uma canção do Charles Trenet porque um dos músicos partiu uma corda e precisei de fazer tempo. E foi giro, cantei e foi um sucesso enorme porque as pessoas não estavam à espera. Tive sorte, entrei num tom certo.

Os portugueses foram surpreendidos ao ver uma foto de Madonna com Celeste Rodrigues. O fado pode inspirar os estrangeiros?
Sim, como toda a vida a música que veio de fora nos inspirou - o tango, o flamenco, Tom Jobim e a bossa-nova. E após a Amália o fado voltou a estar numa fase muito boa, há muita gente a levar o fado lá para fora. Quando as pessoas vêm cá, a primeira coisa que desejam é ouvir fado.

Alguma vez pensou viver fora de Portugal?
Não, porque não posso fazer aquilo de que gosto fora do país.

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