Caiu uma abóbada no Convento da Saudação em Montemor-o-Novo
Eram quatro horas da manhã de domingo quando uma abóbada do Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, desabou. No dia seguinte, o coreógrafo Rui Horta, responsável pela associação cultural O Espaço do Tempo que funciona naquele espaço há quase 20 anos, colocou um desabafo no Facebook: "Hoje é um dia triste para nós. Um dia que marcará para sempre o nosso desespero e impotência, pondo a nu a fragilidade da cultura no nosso país. Um dia em que, após 18 anos em Montemor, numa luta incansável pela arte e pela cultura, nos sentimos totalmente abandonados pelos poderes públicos."
Quando hoje atendeu o telefone, Rui Horta já estava um pouco mais animado. "É incrível: publiquei o texto no domingo à noite e no dia seguinte já tinha mais de mil 'gostos' e imensas partilhas. Tenho recebido muitas mensagens, de todo o mundo, gente que nos quer ajudar, que quer fazer crowdfunding, que se voluntaria para vir trabalhar. Tem sido bastante comovente", conta ao DN o coreógrafo que em julho deste ano recebeu o Prémio Gulbenkian.
O Espaço do Tempo "está ligado ao novo teatro português", diz Rui Horta, enumerando alguns dos artistas que passam regularmente por ali, desde Tiago Rodrigues (atual diretor do Teatro Nacional D. Maria II) até ao Teatro Praga. No comunicado divulgado a propósito do Prémio Gulbenkian, o antigo ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes sublinhava que o Espaço do Tempo "tem desenvolvido um trabalho de impacto local e de forte ligação à comunidade", um trabalho que "vem usando a cultura como ferramenta fundamental de desenvolvimento e crescimento das valências do território e das suas comunidades".
Mas o reconhecimento por parte da comunidade artística não foi suficiente para fazer que o convento, datado do século XVII, recebesse as obras que eram necessárias. A abóbada caiu num dos estúdios "mais importantes", explica o coreógrafo Rui Horta. A sala já estava interditada há uma semana, quando os responsáveis de O Espaço do Tempo repararam que havia algumas fissuras e uma racha longitudinal na abóbada, o que colocava a estrutura em risco. Na sexta-feira passada, receberam uma visita de técnicos da Câmara Municipal de Montemor e da Direção Regional de Cultura do Alentejo e decidiu-se que hoje, segunda-feira, dar-se-ia início a alguns trabalhos de prevenção. Entretanto, na noite de sábado para domingo, após um dia de chuva e ventos fortes, a abóbada acabou por ceder.
A queda do teto deixou toda a equipa desalentada. "A minha paciência chegou ao fim", diz Rui Horta. "Sou geralmente um tipo bem-disposto e não gosto de vir queixar-me para os jornais, mas esta é uma situação completamente inaceitável." Desde que chegou ao convento, há 18 anos, que a equipa sabe da necessidade de realizar ali obras de recuperação. No entusiasmo inicial, ainda em 2002, com a participação da Direção-Geral do Património foi feito um projeto que incluía a recuperação do convento e o seu alargamento. "Há um projeto feito com 800 páginas, fotografias, caderno de encargos, tudo", conta o diretor artístico. Mas, depois, nada avançou.
"Há cinco anos percebemos que o Estado não ia fazer isto. Então, a câmara propôs tomar posse do edifício e ficar responsável pelas horas. Mas o processo também foi demorado e só há dois meses é que se concretizou", conta Rui Horta. "Por isso, é muito injusto que isto tenha acontecido agora", conclui.
Em setembro, o presidente do município, António Pinetra, confirmava que, "com este auto de cedência que assinámos, podemos agora recorrer a financiamento, através dos fundos comunitários ou de outros, para recuperar o edifício e dotá-lo de condições de segurança". O autarca dizia que o convento, classificado como Monumento Nacional, está "bastante degradado", e garantia que a câmara, em parceria com a Direção Regional de Cultura do Alentejo, já tem "pronto e aprovado" o projeto de recuperação, num investimento total a rondar os 4,5 milhões de euros. "Temos tudo preparado", falta só "surgir a oportunidade de uma linha de financiamento a que nos possamos candidatar", afirmava na altura, afiançando que, se for necessário, a autarquia "está em condições de assumir e suportar" a parte das verbas nacionais.
"O convento está completamente degradado e, desde há vários anos, sempre que havia mudanças de governo, éramos visitados por um ministro ou um secretário de Estado, que prometiam obras que nunca avançaram", criticou o autarca, eleito pela CDU. Algumas zonas "até foram fechadas ao público e não podem ser visitadas, porque estão constantemente a cair pedras e partes do reboco", relatou, enfatizando que há áreas "que a qualquer momento podem ruir".
O que, efetivamente, acabou por acontecer.
Neste momento, além desta sala sem teto, há toda uma ala do convento fechada, por prevenção. "Temos três estúdios fechados, além de seis quartos duplos e uma sala de estar." Na próxima semana, o Espaço do Tempo vai receber uma residência da companhia Mala Voadora, que traz 20 pessoas, e vão ter todos de dormir fora do convento. "Para nós é muito duro. Dormir aqui faz parte da experiência da residência. O convento é uma casa para os artistas que se instalam aqui, dormem, comem, vivem aqui. E agora estou a tentar arranjar alojamentos rurais para eles."
Apesar deste desalento, Rui Horta diz que este é também o momento de olhar para o futuro: "O teto caiu mas continuamos a ter chão. E este buraco, que é muito triste, é ao mesmo tempo muito bonito. E lembra-nos que o céu está à nossa espera. Nós não vamos parar", diz determinado. O Espaço do Tempo conta com a ajuda da Câmara Municipal e outras autoridades regionais, mas Rui Horta teme que, apesar de toda a boa vontade, a câmara não tenha capacidade para fazer obras profundas num monumento daquele tamanho. Para fazer ali (finalmente) o Centro de Artes Performativas com que sonhou serão necessários fundos europeus: "Isto só se faz com vontade política." E deposita alguma esperança na nova ministra da Cultura, Graça Fonseca, que hoje tomou posse: "E nós esperamos que esta ministra se interesse por nós. Que venha cá ver e perceba a importância deste projeto." Afinal, este é o terceiro ministro da Cultura deste governo e, quem sabe, como diz o coreógrafo, "à terceira seja de vez".