Cafarnaum: a miséria filmada sem limites
Nadine Labaki conseguiu um feito notável, e bastante simbólico, nos dias que correm: é a primeira mulher árabe a ser nomeada para um prémio da Academia de Hollywood. Um facto que merece todos os elogios, mas que não pode ofuscar a pergunta: será isso sinónimo de uma obra com dimensão proporcional à conquista? Digamos que aí está a pecha desta nomeação. Cafarnaum é um filme claramente à medida da estatueta (não fosse o favoritismo de Roma, de Alfonso Cuáron, teria boas hipóteses de ganhar), mas toda a sua estrutura está corroída por um humanismo mercantil que deixa muito a desejar desta realizadora, que antes nos tinha dado o mais do que estimável Caramel.
Com a câmara apontada à paisagem social mais pobre de Beirute, Labaki vai contar-nos aqui a história de Zain (Zain Al Rafeea), um menino que se calcula ter 12 anos, e que luta para sobreviver nos guetos do Líbano, entre o mais chocante retrato familiar e as adversidades sociais que o empurram para o limite da concretização de um crime. Começamos por encontrá-lo no banco dos réus, a dizer que quer processar os seus pais por ter nascido, e depois somos como que atirados com ele, em retrospetiva, para o âmago da realidade que o conduziu àquele momento. Uma viagem narrativa que Labaki constrói com um aparente sentido documental, mascarado de neorrealismo, e que avoluma a tragédia humana ao juntar o destino de Zain ao de uma refugiada etíope, esta com um filho bebé que tenta esconder do mundo, por falta de documentos.
Os documentos - ou melhor, a ausência deles - constituem-se aliás como um detalhe fundamental dentro do que se pretende mostrar em Cafarnaum, uma vez que é justamente pelo facto de os protagonistas não terem bilhetes de identidade que o filme se interessa pela sua "inexistência" social. Mas esta bonita intenção de Labaki não chega para salvar o simplismo e a manipulação psicológica da sua abordagem, marcada por uma cartilha humanitária que se corrompe a todo o instante.
Ele é imagens de drone que sublinham a "estética" da pobreza, ele é música e movimentos de câmara lenta em situações cirúrgicas e quadros visuais que fabricam o arrebatamento das emoções do espectador, e nem por um momento o filme nos deixa respirar de toda esta miséria acumulada - é preciso amontoar sempre mais e mais até que se fique completamente atolado num sentimento de compaixão. Dito de outra forma, não há meias medidas nem subtileza que vingue; bate-se no fundo para conseguir uma empatia básica e universal.
O próprio título Cafarnaum, que é a cidade bíblica onde Jesus terá realizado vários milagres, e cuja palavra significa "lugar onde se amontoam objetos de forma desordenada", assume toda a ideia do filme. E mesmo que a realizadora libanesa tenha escolhido não-atores com uma experiência pessoal relacionada com o cenário retratado, esse alicerce genuíno não sobrevive ao impulso da fotogenia da penúria. Até a perda da inocência de Zain, que é uma criança mais adulta do que muitos adultos, entra em contradição com o que Nadine Labaki trabalha no espectador. A saber, uma ingenuidade sentimental que promova a adesão a uma história com tema e mensagem sociais... Há sempre maneiras de o fazer sem demagogia cinematográfica. Neste caso, temos muita pena que seja quase só isso que vê, para além da revelação de um pequeno ator.
*Medíocre