Caetano e Gil celebram 50 anos de música e outros tantos de amizade

CD e DVD com o concerto que Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram em Portugal em julho.
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Em 1969, em plena ditadura militar no Brasil, os músicos e amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam em regime de "confinamento" nas suas casas em Salvador após terem estado detidos por subversão. As autoridades acabaram por deixar os dois cantores dar um espetáculo para financiar a partida para o exílio. O concerto realizou-se a 20 de julho no recém-inaugurado Teatro Castro Alves, exatamente no mesmo dia em que Neil Armstrong pisava a Lua. "A gente não viu a descida do homem na Lua porque estava fazendo o show de despedida", lembrou mais tarde Caetano Veloso. Nessa noite, o público ouviu, pela primeira vez, o samba Aquele Abraço, de Gil. Na noite seguinte, foi feita (em péssimas condições técnicas) a gravação de Alegria, Alegria, de Caetano, hino do movimento tropicalista. Depois, os músicos saíram do Brasil com destino a Londres e escala em Lisboa. Três anos depois, a gravação do espetáculo deu origem ao disco Barra 69.

Esse foi o primeiro disco ao vivo que juntou Caetano e Gil. Depois disso, os dois voltaram a partilhar muitas vezes o palco (e voltaram a partilhar aquele mesmo palco) e, apesar de seguirem caminhos distintos, na música e na vida, a amizade permaneceu. Foi por isso sem grande surpresa que, no ano passado, os fãs receberam a notícia de que Caetano Veloso e Gilberto Gil iam comemorar os seus 50 anos de carreira juntos, em palco e com uma grande digressão. Desde 1994 e do (mais uma vez) fantástico Tropicália 2 que os dois não faziam uma tournée juntos.

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Dois amigos, voz e violão

A digressão Dois Amigos, Um Século de Música começou em Amesterdão a 25 de junho e passou por Portugal, pelo Festival EDP Cool Jazz, em Oeiras, a 31 de julho. De acordo com a promotora, os "dois amigos" realizaram 44 concertos esgotados em 35 cidades de 21 países e para uma audiência superior a 135 mil espectadores.

"Mal tivemos tempo de pensar", explicou Caetano Veloso à imprensa brasileira. "Fizemos o roteiro em pouco tempo. Tivemos pouquíssimos ensaios. Acho que o que entendemos e sentimos sobre o trabalho que vimos fazendo há tantos anos nos levou a criar um roteiro quase não pensado que, uma vez mostrado ao público, se mostrou forte."

A digressão passou depois para o Brasil. A 22 de agosto, atuaram no Citibank Hall, em São Paulo. É o registo desse encontro, Multishow ao Vivo, que agora é editado em CD e DVD. São 28 temas em formato de voz e violão, intercalados pelas palmas ou, ocasionalmente, pelo coro do público. E o que se torna realmente visível ao longo destes 110 minutos é como estes dois músicos conseguiram juntar um punhado de ótimas canções, compostas ao longo de 50 anos, em contextos tão diversos, em fases tão distintas das suas carreiras, e que, apesar de tudo, ficam tão bem ouvidas assim, juntas.

O repertório vai da música mais antiga, De Manhã, primeira composição de Caetano, de 1963, gravada por Bethânia dois anos mais tarde, até à recente As Camélias do Quilombo do Leblon, apresentada pela primeira vez neste show após a digressão internacional e que passou desde então a fazer parte do repertório. Terminada nessa mesma madrugada, como Caetano explicou ao público (só aparece no DVD), a letra faz um paralelo entre o Brasil esclavagista - o quilombo na zona sul carioca, protegido pela princesa Isabel, que recebia em troca camélias, que assim se tornam símbolo da abolição - e a vida na Palestina, que os músicos conheceram durante a digressão, num momento, aliás, envolvido em alguma polémica, quando atuaram em Telavive, em Israel.

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No concerto, Gil lembra o seu cartão-de-visita Eu Vim da Bahia. Da revolução tropicalista, estão presentes Domingo no Parque, Tropicália e Marginália 2. Entre as canções do exílio conjunto em Londres, está Nine Out of Ten. De quando encarnaram os Doces Bárbaros com Gal e Bethânia, aparecem Esotérico e São João, Xangô Menino. E tantos outros sucessos. Caetano toca Sampa, Terra, Odeio Você. Gil traz Drão, Expresso 222 e Toda a Menina Baiana. Entre as versões, há duas em espanhol: Tonada de Luna Llena, do venezuelano Símon Díaz, gravada por Caetano para A Flor do Meu Segredo, filme de Pedro Almodóvar, e Tres Palabras, do cubano Osvaldo Farrés, já gravada por Gil. Há ainda a italiana Come Prima, sucesso na voz de Tony Dallara. Em palco, eles falam pouco. Mas os olhares traduzem bem a cumplicidade que existe.

Caetano e Gil, Yin e Yang

Gil e Caetano começaram a trocar opiniões e acordes no início dos anos 60. Em 1964, montaram o show Nós, com Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé. Em 1967 concorreram ambos, mas em separado, ao Festival de Música Brasileira. A história que têm juntos não cabe nesta página. Hoje já têm 73 anos e, mesmo musicalmente, cada um seguiu o seu caminho, com Caetano mais ocidentalizado e Gil mais dedicado às músicas regionais. "Diferentes, até mesmo opostos", reconheceu Caetano Veloso, ao longo do último ano tiveram de se adaptar um ao outro: "Nessa idade, viajar é mais pesado. A gente não sai tanto de dia para passear e ver as coisas. Fica quase restrito ao show. Mesmo assim, fomos à Cisjordânia. E jantámos no Beaubourg em Paris. E conversamos muito em palcos e aeroportos. De minha parte, há décadas que não fazia passagem de som. Gil é viciado em passagem de som e, por causa dele, eu tenho ido a esse rito em todas as cidades." "Isso só reforça nossa sensação de complementaridade", explicou. "Yin e Yang, canceriano e leonino, até preto e branco já nos sentimos."

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