Mau como as cobras, é o que se pode concluir dos relatos que chegaram aos nossos dias. É de João Maria de Sousa Almeida, o barão de Água Izé, que se fala. O impulsionador da cultura de cacau em São Tomé e Príncipe foi também o primeiro a trazer a árvore fruta-pão para as ilhas da segunda nação mais pequena de África (depois das Seychelles). Viveu entre 1816 e 1869, foi poeta, agricultor e traficante de seres humanos. A família do barão possuía um solar na ilha do Príncipe, sendo o pai coronel e proprietário de terras. João Maria foi escrivão, comerciante em Angola e em 1845 viajou para Portugal. De Lisboa seguiu para conhecer a Europa e, posteriormente, o Brasil. Aí ficou a conhecer a vida e a organização nas plantações..Quando regressou a São Tomé, em 1853, trouxe café, tabaco, óleo de palma e cacau - a que ele chamava a "árvore dos pobres". Dois anos depois já o produzia nos terrenos nas imediações da Praia-Rei, hoje Água Izé. Em 1858 publicou um estudo sobre como plantar, colher e conservar cacau e, dez anos depois, recebeu o título de barão de Água Izé. Foi ainda presidente da câmara municipal da cidade de São Tomé, mas além dos seus feitos políticos e agrícolas, ganhou notoriedade de outra forma, através do medo, havendo até uma lenda sobre ele que chegou aos nossos dias. Além dos maus-tratos e dos castigos aos trabalhadores, o barão era conhecido pelas pretensas capacidades sobrenaturais. Dele ainda hoje se diz que entrava de cavalo na Boca do Inferno, junto à Roça de Água Izé, e saía instantes depois perto de Cascais, na outra Boca do Inferno que aí fica. A semelhança entre ambas as formações rochosas é óbvia: para lá do mar bravio que as fustigam, também se registam vários casos de vidas aí perdidas. A lenda ganhou tanta força que, ainda hoje, o lugar é merecedor de respeito e dúvida por grande parte dos são-tomenses..A roça do barão de Água Izé foi fundada na segunda metade do século XIX e a "árvore dos pobres" começou a tornar-se rentável. Até cerca de 1872, aproximadamente dois terços dos proprietários de terras da ilha eram negros. Menos de 30 anos depois, através de compras, fraude, coação e crime, os fazendeiros brancos passaram a deter 90% das propriedades. Foi a vez de entrarem em campo outros produtores, como Manuel da Costa Pereira (fundador da roça Monte Café), José Maria de Freitas (fundador das roças Belavista e Santarém) ou Gabriel de Bustamante (brasileiro impulsionador da roça Rio do Ouro)..A primeira década do século XX marcou o ponto máximo da produção de cacau em São Tomé e Príncipe: mais de 30 mil toneladas de grão em 1909, com clientes de peso como a Cadbury ou a Rowntree. Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as colheitas foram armazenadas, mas o arquipélago já era o líder mundial do mercado de cacau. Em 1910, por exemplo, o peso que o produto tinha na economia local ultrapassava os 95% e hoje ainda representa quase 80% das exportações do país. A história do cacau e do chocolate em São Tomé e Príncipe, no entanto, não é doce. Nesse início do século XX, a Cadbury quis investigar os relatos de maus-tratos e trabalho escravo nestas ilhas de onde chegava praticamente metade do cacau que a empresa britânica utilizava. Em 1902, um investigador (Joseph Burtt) foi a São Tomé e, nos meses seguintes, William Cadbury esteve em Lisboa para discutir as leis do trabalho com os donos das roças. Os anos foram passando com muita ação de bastidores para pressionar o governo português a melhorar as condições dos trabalhadores. Só que, em 1905/1906 a revista norte-americana Harper's Magazine publicou a denúncia "O comércio de escravos de hoje - As ilhas da desgraça", focada no que se passava no arquipélago. Em resultado disso, a Cadbury e outras importantes empresas ligadas ao chocolate passaram a comprar a matéria-prima no Gana, por exemplo. Só mais de um século depois é que o cacau são-tomense voltaria a ser bem recebido internacionalmente..O economista Armindo de Ceita do Espírito Santo, num estudo de 2009, não viu, no entanto, o cacau como saída para a economia são-tomense: "Contrariamente à perspetiva de alguns académicos de agronomia, a economia do cacau não tem, em termos de desenvolvimento, viabilidade em São Tomé e Príncipe. São vários os argumentos que o justificam: a pequena dimensão de STP, por si só, constitui um fator limitativo ao aumento sustentado de produção agrícola de exportação; a aptidão agrícola dos solos são-tomenses encontra-se prejudicada pela natureza vulcânica do arquipélago e do tipo do seu relevo que é muito enrugado a descair para os vales; as derrubadas ocorridas no início do século passado conduziram ao esgotamento dos solos e ao surgimento em força do rubrocinto [inseto que afeta o cacaueiro], os quais levaram ao definhamento das plantações." Afirmou ele ainda, no mesmo estudo: "A insistência na economia do cacau serve apenas para beneficiar uns poucos e iludir a esmagadora maioria dos pequenos agricultores locais rurais." E aponta como atividade primordial a ser abarcada a indústria da pesca..Apesar desta posição, o cacau vai recuperando terreno. Longe vão os tempos das dezenas de milhares de toneladas de produção anual no início do século XX. Na década de 1970 o valor ficou pelas 11 mil toneladas e, já no século XXI, falamos de 2600 toneladas (2013) ou até de pouco mais de 1800 toneladas, em 2005. Em junho deste ano, uma notícia veio confirmar a aposta no cacau em São Tomé e Príncipe - a construção de uma fábrica de chocolate nacional. Será no distrito de Lobata, em Canaveal, responsabilidade da Cooperativa de Produção e Exportação de Cacau Biológico (Cecab), que junta cerca de 35 associações e abrange mais de 200 famílias produtoras de cacau..Já existem vários outros players no terreno, no entanto. O mais mediático é Claudio Corallo, o italiano de quem sempre se fala (e com razão) quando o assunto é cacau e São Tomé. Tem mais de 40 anos de experiência na produção de café e cacau, trabalhou no Zaire e na Bolívia e em 1992 chegou a São Tomé. Quis aplicar os seus conhecimentos sobre café ao cacau e deparou-se com o sabor amargo dos grãos de cacau. Montou um laboratório e mergulhou no produto para criar um dos chocolates mais puros que existem no mercado. É das suas plantações no Terreiro Velho (ilha do Príncipe) e em Nova Moca (ilha de São Tomé), sem adição de aromas na preparação e aproveitando árvores que descendem das primeiras a chegar a África, no início do século XIX, que chega o cacau e o café Corallo, distribuído um pouco por todo o mundo..Outra marca de chocolate que utiliza a matéria-prima do país é a belga Callebaut, com o seu Sao Thome a destacar-se na variada oferta da empresa. São apontadas as notas de alperce, frutos vermelhos, cítricos e chá num chocolate intenso e complexo..A roça Digo Vaz, norte de São Tomé, por exemplo, foi fundada em 1880 e pertence ao grupo francês Kennyson desde 2004. O objetivo da compra da propriedade, além do lado empresarial, foi revitalizar o crescimento de cacau no país tornando-o um negócio rentável, desenvolvendo a agricultura local. Produzem duas variedades de cacau (amelonado e trinitário), além de banana, jaca, maracujá, baunilha, canela e pimenta, empregando mais de 250 trabalhadores desde 2018, ano em que a fábrica começou a funcionar..O objetivo de todos estes intervenientes, atualmente, é obter a certificação biológica do cacau produzido em São Tomé e Príncipe, de forma a aumentar as exportações. Longe vai o tempo do trabalho escravo nas roças - e consequente boicote comercial -, mas outras questões estão a ser levantadas, como as boas práticas ambientais e o impacto positivo na vida da populações locais que trabalham em áreas ligadas à indústria do cacau. Passo a passo, as ilhas do chocolate voltam a estar no mapa.
Mau como as cobras, é o que se pode concluir dos relatos que chegaram aos nossos dias. É de João Maria de Sousa Almeida, o barão de Água Izé, que se fala. O impulsionador da cultura de cacau em São Tomé e Príncipe foi também o primeiro a trazer a árvore fruta-pão para as ilhas da segunda nação mais pequena de África (depois das Seychelles). Viveu entre 1816 e 1869, foi poeta, agricultor e traficante de seres humanos. A família do barão possuía um solar na ilha do Príncipe, sendo o pai coronel e proprietário de terras. João Maria foi escrivão, comerciante em Angola e em 1845 viajou para Portugal. De Lisboa seguiu para conhecer a Europa e, posteriormente, o Brasil. Aí ficou a conhecer a vida e a organização nas plantações..Quando regressou a São Tomé, em 1853, trouxe café, tabaco, óleo de palma e cacau - a que ele chamava a "árvore dos pobres". Dois anos depois já o produzia nos terrenos nas imediações da Praia-Rei, hoje Água Izé. Em 1858 publicou um estudo sobre como plantar, colher e conservar cacau e, dez anos depois, recebeu o título de barão de Água Izé. Foi ainda presidente da câmara municipal da cidade de São Tomé, mas além dos seus feitos políticos e agrícolas, ganhou notoriedade de outra forma, através do medo, havendo até uma lenda sobre ele que chegou aos nossos dias. Além dos maus-tratos e dos castigos aos trabalhadores, o barão era conhecido pelas pretensas capacidades sobrenaturais. Dele ainda hoje se diz que entrava de cavalo na Boca do Inferno, junto à Roça de Água Izé, e saía instantes depois perto de Cascais, na outra Boca do Inferno que aí fica. A semelhança entre ambas as formações rochosas é óbvia: para lá do mar bravio que as fustigam, também se registam vários casos de vidas aí perdidas. A lenda ganhou tanta força que, ainda hoje, o lugar é merecedor de respeito e dúvida por grande parte dos são-tomenses..A roça do barão de Água Izé foi fundada na segunda metade do século XIX e a "árvore dos pobres" começou a tornar-se rentável. Até cerca de 1872, aproximadamente dois terços dos proprietários de terras da ilha eram negros. Menos de 30 anos depois, através de compras, fraude, coação e crime, os fazendeiros brancos passaram a deter 90% das propriedades. Foi a vez de entrarem em campo outros produtores, como Manuel da Costa Pereira (fundador da roça Monte Café), José Maria de Freitas (fundador das roças Belavista e Santarém) ou Gabriel de Bustamante (brasileiro impulsionador da roça Rio do Ouro)..A primeira década do século XX marcou o ponto máximo da produção de cacau em São Tomé e Príncipe: mais de 30 mil toneladas de grão em 1909, com clientes de peso como a Cadbury ou a Rowntree. Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as colheitas foram armazenadas, mas o arquipélago já era o líder mundial do mercado de cacau. Em 1910, por exemplo, o peso que o produto tinha na economia local ultrapassava os 95% e hoje ainda representa quase 80% das exportações do país. A história do cacau e do chocolate em São Tomé e Príncipe, no entanto, não é doce. Nesse início do século XX, a Cadbury quis investigar os relatos de maus-tratos e trabalho escravo nestas ilhas de onde chegava praticamente metade do cacau que a empresa britânica utilizava. Em 1902, um investigador (Joseph Burtt) foi a São Tomé e, nos meses seguintes, William Cadbury esteve em Lisboa para discutir as leis do trabalho com os donos das roças. Os anos foram passando com muita ação de bastidores para pressionar o governo português a melhorar as condições dos trabalhadores. Só que, em 1905/1906 a revista norte-americana Harper's Magazine publicou a denúncia "O comércio de escravos de hoje - As ilhas da desgraça", focada no que se passava no arquipélago. Em resultado disso, a Cadbury e outras importantes empresas ligadas ao chocolate passaram a comprar a matéria-prima no Gana, por exemplo. Só mais de um século depois é que o cacau são-tomense voltaria a ser bem recebido internacionalmente..O economista Armindo de Ceita do Espírito Santo, num estudo de 2009, não viu, no entanto, o cacau como saída para a economia são-tomense: "Contrariamente à perspetiva de alguns académicos de agronomia, a economia do cacau não tem, em termos de desenvolvimento, viabilidade em São Tomé e Príncipe. São vários os argumentos que o justificam: a pequena dimensão de STP, por si só, constitui um fator limitativo ao aumento sustentado de produção agrícola de exportação; a aptidão agrícola dos solos são-tomenses encontra-se prejudicada pela natureza vulcânica do arquipélago e do tipo do seu relevo que é muito enrugado a descair para os vales; as derrubadas ocorridas no início do século passado conduziram ao esgotamento dos solos e ao surgimento em força do rubrocinto [inseto que afeta o cacaueiro], os quais levaram ao definhamento das plantações." Afirmou ele ainda, no mesmo estudo: "A insistência na economia do cacau serve apenas para beneficiar uns poucos e iludir a esmagadora maioria dos pequenos agricultores locais rurais." E aponta como atividade primordial a ser abarcada a indústria da pesca..Apesar desta posição, o cacau vai recuperando terreno. Longe vão os tempos das dezenas de milhares de toneladas de produção anual no início do século XX. Na década de 1970 o valor ficou pelas 11 mil toneladas e, já no século XXI, falamos de 2600 toneladas (2013) ou até de pouco mais de 1800 toneladas, em 2005. Em junho deste ano, uma notícia veio confirmar a aposta no cacau em São Tomé e Príncipe - a construção de uma fábrica de chocolate nacional. Será no distrito de Lobata, em Canaveal, responsabilidade da Cooperativa de Produção e Exportação de Cacau Biológico (Cecab), que junta cerca de 35 associações e abrange mais de 200 famílias produtoras de cacau..Já existem vários outros players no terreno, no entanto. O mais mediático é Claudio Corallo, o italiano de quem sempre se fala (e com razão) quando o assunto é cacau e São Tomé. Tem mais de 40 anos de experiência na produção de café e cacau, trabalhou no Zaire e na Bolívia e em 1992 chegou a São Tomé. Quis aplicar os seus conhecimentos sobre café ao cacau e deparou-se com o sabor amargo dos grãos de cacau. Montou um laboratório e mergulhou no produto para criar um dos chocolates mais puros que existem no mercado. É das suas plantações no Terreiro Velho (ilha do Príncipe) e em Nova Moca (ilha de São Tomé), sem adição de aromas na preparação e aproveitando árvores que descendem das primeiras a chegar a África, no início do século XIX, que chega o cacau e o café Corallo, distribuído um pouco por todo o mundo..Outra marca de chocolate que utiliza a matéria-prima do país é a belga Callebaut, com o seu Sao Thome a destacar-se na variada oferta da empresa. São apontadas as notas de alperce, frutos vermelhos, cítricos e chá num chocolate intenso e complexo..A roça Digo Vaz, norte de São Tomé, por exemplo, foi fundada em 1880 e pertence ao grupo francês Kennyson desde 2004. O objetivo da compra da propriedade, além do lado empresarial, foi revitalizar o crescimento de cacau no país tornando-o um negócio rentável, desenvolvendo a agricultura local. Produzem duas variedades de cacau (amelonado e trinitário), além de banana, jaca, maracujá, baunilha, canela e pimenta, empregando mais de 250 trabalhadores desde 2018, ano em que a fábrica começou a funcionar..O objetivo de todos estes intervenientes, atualmente, é obter a certificação biológica do cacau produzido em São Tomé e Príncipe, de forma a aumentar as exportações. Longe vai o tempo do trabalho escravo nas roças - e consequente boicote comercial -, mas outras questões estão a ser levantadas, como as boas práticas ambientais e o impacto positivo na vida da populações locais que trabalham em áreas ligadas à indústria do cacau. Passo a passo, as ilhas do chocolate voltam a estar no mapa.