Burr vs. Super-Hamilton

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Burr (1973), o segundo na sequência de romances históricos que Gore Vidal escreveu sobre a república a que gostava de chamar os Estados Unidos da Amnésia, começa de uma maneira muito semelhante a Entrevista com o Vampiro. Um jovem amanuense prepara-se para entrevistar um venerável ancião, na tentativa de lhe arrancar a verdade sobre a sua biografia e, com sorte, conseguir um furo jornalístico (neste caso, sobre uma paternidade secreta). O ancião é Aaron Burr, então com 80 anos e, nas palavras de Vidal, "o esqueleto dentro de todos os armários" na História americana - onde foi também um "homem-quase". Nunca chegou a Presidente (foi apenas vice); não ajudou a redigir a Declaração de Independência nem a Constituição; não escreveu sequer um mísero Federalist Paper - embora tenha a morto a tiro alguém que o fez.

É fácil prever em quem o autor deposita a sua simpatia, e Burr recebe a mais exaltada recompensa literária que Gore Vidal é capaz de oferecer: passa o resto do livro a soar exactamente como Gore Vidal. A religião cívica americana, que consiste parcialmente em tratar os Pais Fundadores como estátuas do Cristo Rei, transforma-se numa alegre lavagem de roupa suja. Burr descreve Jefferson como cobarde, mentiroso compulsivo, e péssimo violinista; descreve Washington como um estratega militar incompetente, com mamas descaídas e um rabo aparentemente enorme (facto mencionado mais do que uma vez); e descreve Hamilton como um sociopata traiçoeiro com apetites ditatoriais. "A única coisa que todos tínhamos em comum", reflecte Burr a dada altura, "eram dívidas. Todos vivemos acima das nossas possibilidades, a uma escala colossal". Outra coisa em comum era a vontade de todos em terem imenso sexo, de preferência, porque se trata de um romance de Gore Vidal, uns com os outros. Nessa impossibilidade, canalizavam a vontade de ter imenso sexo uns com os outros para terem imenso sexo com os familiares uns dos outros - ou com os próprios familiares. A celebremente não explicada "insinuação desprezível" que provocou o duelo fatal entre Burr e Hamilton foi sendo interpretada por historiadores como uma acusação de traição à pátria. No livro de Vidal, Hamilton limita-se a espalhar o rumor de que Burr tem uma relação incestuosa com a filha mais velha.

Ver o musical Hamilton depois de ler Burr proporciona uma divertidíssima experiência de dissonância radical: o mesmo grupo de figuras históricas é filtrado através de duas sensibilidades nos extremos opostos do espectro do cinismo. Seria mais ou menos como ler Vasco Pulido Valente e de seguida assistir a um musical de La Féria sobre a Primeira República (acto I, cena 1: um enérgico e sorridente Afonso Costa entra em palco no Politeama enquanto um coro rima "mata-frades" com "saudades").

Hamilton estreou-se na Broadway em 2015 e nos anos seguintes tornou-se uma espécie muito peculiar de êxito global: um êxito global que quase ninguém viu na sua forma original, mas que consumiu indirectamente através de uma procissão de elogios na imprensa, memes na internet e uma omnipresente banda sonora. Os direitos de transmissão foram adquiridos pela Disney por 75 milhões de dólares (aproximadamente cinco vezes a quantia que o péssimo violinista Jefferson pagou a Napoleão pelo Louisiana), e os 160 minutos de espectáculo podem agora ser vistos na plataforma Disney+.

Valores de transferência à parte, uma plataforma com o nome Disney é o lugar mais apropriado para algo como Hamilton, que, como muita da propriedade intelectual da companhia, usa uma mistura precisa de inocência juvenil e co-optação pragmática para produzir algo que, não sendo original, consegue reproduzir o entusiasmo da originalidade. Mesmo num formato em que o espectador cede necessariamente alguma da autonomia individual e dos incentivos colectivos que teria no teatro, é fácil perceber o sucesso da peça. Reduzir eventos históricos complexos a uma linguagem rápida, esperta e cómica é sempre uma tarefa mais difícil do que parece (mesmo que o verbo operativo seja "reduzir").

Uma receita fiável para fazer boa e duradoura cultura popular é misturar com entusiasmo elementos superficialmente subversivos (neste caso, os ritmos do hip hop e um elenco multi-racial) com convenções familiares (a narrativa elementar de "ascensão de origens humildes" e "destinado a coisas maiores" temperada com "história de amor"), e Hamilton é tão eficaz na sua versão dessa receita como Guerra das Estrelas.

Outro ingrediente do sucesso (ou pelo menos do "impacto") foi também o pretexto que ofereceu para escrever sobre política contemporânea. É praticamente impossível (segundo uma busca online não exaustiva) encontrar um texto sobre o musical na imprensa americana que não contenha uma variação sobre a frase "hoje, mais do que nunca, Hamilton... (etc., etc.), ou que não mencione as palavras "Obama", "Clinton", "Trump".

A sombra tutelar da peça, no entanto, é um presidente fictício chamado Bartlet. Um fã confesso de The West Wing, Lin-Manuel Miranda reformula ou parafraseia alguns trechos da série no texto, e um dos números musicais usa como refrão uma citação directa da terceira temporada - "I"m looking for a mind at work." Na série, a frase surge no decorrer de uma das múltiplas celebrações da "inteligência" a que Sorkin submete periodicamente as suas personagens (sempre envolvidos em extenuantes sessões de xadrez, ou a insultarem Deus em Latim, ou a lembrarem-se uns aos outros das suas médias universitárias), e precede uma das também múltiplas demonstrações práticas dessa inteligência: derrotar um adversário político através da aplicação de #factos e #lógica.

Sorkin nunca escreveria algo como as duas sequências de Hamilton em que debates políticos são encenados como batalhas rap, mas é impossível não ver nelas a sua sombra: Hamilton e Jefferson a debater muito depressa os méritos e os deméritos de um sistema financeiro centralizado com uma mistura de arremesso de "estatísticas" e piadas pejorativas organizadas da forma mais devastadora possível é essencialmente uma cena de The West Wing, mas com rimas.

É também um sinal de que Hamilton não é uma contranarrativa a qualquer espécie de situação contemporânea, mas uma fantasia. Como The West Wing, é um objecto cultural quase inteiramente desprovido de ironia, e cujo deslumbramento com a sua versão idealizada do "processo" (histórico ou político) parece ser 100% sincera. Sorkin redefiniu o "centro" político como o sítio bem-comportado onde todos os tecnocratas memorizaram as mesmas estatísticas da OCDE e os mesmos versos de Gilbert & Sullivan, e onde uma personalidade é sempre mais importante do que um programa.

Hamilton reimagina as contradições da fundação da América como mais uma versão de "carácter é destino". Ambos funcionam, de forma desigual, como entretenimento de qualidade, e como anseios monárquicos semienvergonhados (sempre à procura de uma aristocracia de competência). Como guias de orientação política - e é possível que isto seja apenas um preconceito de adepto do Sporting - nunca serão mais do que modelos para aprender a aceitar a derrota com dignidade.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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