Buñuel: filmes mexicanos, fantasmas universais
Arranca hoje em Lisboa (Espaço Nimas) e Porto (Teatro Campo Alegre) a primeira fase de um grande ciclo dedicado a Luis Buñuel (1900-1983). Reunindo 25 longas-metragens, o evento é um dos grandes acontecimentos do nosso verão cinéfilo e passará, até final do ano, por salas de outras cidades (Braga, Coimbra, Figueira da Foz, Setúbal), permitindo ver ou rever 25 títulos (cerca de dois terços) da filmografia do cineasta espanhol.
Relembrar o lugar central de Buñuel na história do cinema é quase redundante. Das experiências fundadoras com os surrealistas, a começar pelo emblemático Um Cão Andaluz (1929), escrito em colaboração com Salvador Dalí, até à derradeira celebração estética que é Este Obscuro Objecto do Desejo (1977), Buñuel afirma-se como um dos mais radicais desafiadores da vocação "naturalista" do cinema.
Mesmo quando exponenciam a dimensão realista das imagens (e sons), os seus filmes ignoram as tradicionais barreiras dramáticas ou simbólicas entre a banalidade do quotidiano e as convulsões da nossa vida fantasmática. Como exemplo radical, lembremos apenas o perturbante fulgor de Belle de Jour (1966), com Catherine Deneuve, por certo um dos dois ou três títulos da década de 60 (a par de Pedro, o Louco e Persona, respetivamente de Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman), sem os quais não é possível compreender a modernidade cinematográfica.
Ironicamente, este cineasta de Espanha, embrenhado nos temas e assombramentos do seu país, tem na sua obra um fundamental capítulo vivido no México. A redescoberta (para alguns espectadores, creio que será mesmo uma revelação) desse período constitui um dos fatores a destacar nesta primeira fase do ciclo. E tanto mais quanto Buñuel trabalhou quase sempre a partir de modelos correntes da produção mexicana, em particular o melodrama, transfigurando-os através de admiráveis exercícios narrativos.
Os Esquecidos (1950) será a referência mais conhecida desse período. Desde logo, porque nele encontramos uma vibração documental, visceralmente realista, já presente em Las Hurdes, Terra sem Pão (1932); depois, porque isso não exclui, antes integra e, de alguma maneira, atrai as componentes de uma visão genuinamente trágica em que os destinos humanos se reveem no confronto eterno, eternamente ambíguo, do Bem e do Mal.
Um filme "obrigatório" - a meu ver uma das peças centrais do universo buñueliano - será Ensaio de um Crime (1955), retrato íntimo das atribulações morais de Archibaldo de la Cruz (Ernesto Alonso, nome lendário do cinema e da televisão do México), cidadão comum que alimenta desejos homicidas contra várias mulheres, em qualquer caso nunca consumando os seus atos, já que elas vão morrendo de forma acidental...
Também conhecido como A Vida Criminosa de Archibaldo de la Cruz, nele encontramos a matriz mais desencantada das histórias deste espanhol adotado pelo México. A saber: virtude e pecado vivem enredados num labirinto em que cada ser humano tenta, nem sempre com grande mérito ou elegância, ser mais do que o seu próprio fantasma. Será preciso acrescentar que, filmado por Buñuel, tudo isso envolve um irresistível humor?