Bruno Vieira Amaral: "Não quero fazer da Margem Sul uma matéria literária"

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Em poucos meses, o anterior romance de Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas, conquistou o penta... Cinco prémios literários, que vão desde o Pen Clube ao José Saramago, com o Fernando Namora pelo meio, entre outros. O autor regressa ao ambiente da Margem Sul onde foi feliz na vez anterior e reescreve a história de um assassínio que aí ocorreu nos anos 80. Uma particularidade, João Jorge, a vítima, era seu primo, de quem não se lembra apesar de terem estado juntos algumas vezes. Como tinha 7 anos então há razões para desconhecer o morto, mas o silêncio familiar que rodeia esse assassínio é anormal. Hoje Estarás Comigo no Paraíso é um exercício literário que une a autobiografia e o romance, confundindo-se a narrativa numa junção decidida pelo capricho do seu criador. Que garante que este segundo romance é "um livro melhor do que o anterior, mais denso e trabalhado, em que tive maior domínio sobre o que estava a fazer". Ao perguntar-se-lhe quantos prémios valerá este livro, responde "não sei". Adianta: "O prémio foi chegar ao fim da escrita e ter sentido que era o que queria. O resto, está fora do meu domínio e é aleatório. Ser um livro melhor é o meu prémio."

Após um primeiro grande sucesso é sempre difícil surpreender o leitor. O que vai acontecer com este romance?

Não foi complicado escrevê-lo porque comecei antes de As Primeiras Coisas ter sido publicado. Portanto, sabia o ponto de partida do que queria escrever, mesmo que ao longo de três anos e meio houvesse muita coisa que mudou, mas o essencial estava definido, o caso do homicídio do meu primo.

Não é uma exposição difícil e sensível à autocensura estar na primeira pessoa?

A partir de um dado momento preocupou-me mais a orgânica do romance do que o que ia revelar. Há sempre autocensura, mas tenho consciência de que ao narrar deste modo abrem-se outras possibilidades. Cria limites e o funcionamento do romance passa a ter mais importância do que a colagem com os factos da minha vida pessoal.

"O único interessado em desenterrar a história era eu." Porquê esta confissão?

A família teria interesse mas nunca o suficiente para investigar, daí que fosse o primeiro que consultou o processo judicial. Ele morreu e houve um apagamento, não se falou muito sobre isso e o que eu conhecia eram várias versões.

Interessava resgatar a história. Pode fazer-se isso através da literatura?

Interessava-me perceber quem eu era e quem ele era naquele momento. Sabia que tinha vindo de Angola com a nossa tia e pouco mais. O facto de não ter nenhuma memória dele perturbava-me pois recordo muitas coisas dessa época e dele nem uma única.

Foi difícil reconstruir aquele tempo?

Os mecanismos de construção da memória interferem e as pessoas lembram-se do que lhes convém ou de pormenores insignificantes que, no entanto, para mim eram importantes. Quanto ao homicídio, era grande o desinteresse, felizmente não queria centrar aí o livro mas perceber o que fazia e com quem se dava.

Teve muitas surpresas?

Algumas, mas como sabia muito pouco foi quase tudo surpresa. A imagem dele era pouco nítida e trabalhei o que apurava com a euforia da descoberta.

Diz que a família e os amigos pouco falam do passado em Angola. É outro livro?

Sim e não. Quando comecei a investigar rapidamente entendi que Angola seria importante porque ele veio de lá, tal como a minha família paterna. Na fase inicial pensei em centrar a história num certo período mas desisti pois ia por um caminho que não beneficiava o que queria escrever. Apesar de tudo, Angola é importante para perceber aquele rapaz, pois nasceu no Novo Redondo e ainda pequeno foi viver para Luanda, o que marcou a sua personalidade. Sei disso porque a única afirmação dele que se sabe ser verdadeira refere: "Cuidado que eu sou de Luanda." É o que diz a uns miúdos e essa é a altura em que se ouve realmente a sua voz.

Esta é uma das histórias que ficou de fora do romance anterior?

A história já lá estava, é a do Joãozinho Treme-Treme, que é assassinado e nunca se chega a saber que era o homicida. Passei por ela mas não a desenvolvi.

Continua a usar o cenário da Margem Sul. É coincidência ou de propósito?

Não quero fazer da Margem Sul matéria literária nem há intenção em recuperar o espaço, é antes um meio que conhecia bem e de muitas histórias que me permitiam inventar outras que cabiam naquele universo. Foi um acaso.

Há temas constantes no livro: a pobreza das casas e a religião. É para agarrar o leitor ou precisava de pôr cá fora?

Estamos a falar do Portugal de há 30 anos e de casas de um bairro social. Quanto à religião, é uma das minhas obsessões. Tudo o que está ali é importante para mim, não é para colorir. O escritor deve dar primazia às suas obsessões em vez de ilustrar um quadro com elementos pitorescos. Fica melhor.

Nem é preciso perguntar o que é autobiográfico...

Há muito mas é romance. Senão teria apresentado como memórias e seria diferente. Quis ter liberdade para manipular os factos, inventar outros e alterar a sequência real. Vai buscar muito à minha vida mas não se pode contabilizar.

Na maior parte do tempo o leitor acha que há pouco disso e mais memórias...

Ainda bem, o leitor não deve preocupar-se se aconteceu mas achar que é verdade. É isso que procuro.

Quando aparece o nome do autor na narrativa não é um problema?

Não. Cria constrangimentos literários quando assumo que o narrador tem o meu nome mas o que quero é criar esse elemento de dúvida e que seja uma das condições de leitura. O que procurei foi entrelaçar o real e o inventado de modo a que o todo pareça real no fim e o leitor não distinga o que é da imaginação.

Hoje Estarás Comigo no Paraíso
Bruno Vieira Amaral
Editora Quetzal
367 páginas
PVP: 17,70 euros

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