Brasil. Todos os ex-presidentes reclamam protagonismo nas eleições de 2022

Além de Lula, líder nas sondagens, Fernando Henrique Cardoso dita o ritmo do seu partido. Collor e Temer aproximam-se de Bolsonaro. A influência de Sarney é cobiçada pelos candidatos. E Dilma é notícia involuntária
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"O presidente da República, terminado o seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de quatro funcionários, para segurança e apoio pessoal, bem como a dois veículos oficiais com motoristas", diz o artigo 1º da lei 7474 de 1986, nos termos do artigo 59º da Constituição do Brasil. No entanto, os ex-presidentes do gigante sul-americano têm, na prática, um direito muito mais valioso do que aqueles dispostos na letra fria da lei: o direito de influenciar. Nas eleições de 2022, esse direito vai voltar e em força.

Lula da Silva à parte, uma vez que se recandidata, todos os outros ex-chefes de estado vivos foram notícia e prometem continuar a sê-lo na campanha eleitoral até outubro do próximo ano.

"Na eleição de 2018, a influência dos ex-presidentes fez-se sentir menos porque foi a eleição da anti-política que elegeu Jair Bolsonaro, o pior de todos os presidentes brasileiros da história, como é hoje em dia consensual à esquerda e à direita e entre quem votou nele e quem não votou", nota o cientista político Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado. "Depois dessa, digamos, bebedeira anti-política, temos agora a ressaca, o regresso ao "velho normal", com os ex-presidentes a tentarem aconselhar e influenciar politicamente", acrescenta, em conversa com o DN.

"Em todos os sistemas presidencialistas, os ex-presidentes assumem um papel de anciãos, de conselheiros, no caso do Brasil, em que ao contrário do que se passa nos Estados Unidos não há um papel robusto da sociedade civil e por isso os ex-presidentes não têm tanto o hábito de criar fundações, as exceções são a bem-sucedida fundação de Fernando Henrique Cardoso e o não tão bem-sucedido instituto de Lula, os ex-presidentes exercem um papel, eu não diria mítico, mas quase imperial, uma herança da monarquia", diz Vieira.

"Quando estudei Dom Pedro II, no livro As Barbas do Imperador, destaquei essa ideia de que não só damos um espaço de muito poder ao presidente, como também, historicamente, lhe reservamos esse lugar simbólico de pai", observou, por sua vez, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em reportagem sobre o tema do jornal Folha de S. Paulo.

"Todos os ex-presidentes sempre estiveram à espreita como poderosos articuladores de bastidores", recorda Vieira, "ao ponto de até o general Ernesto Geisel, mesmo tendo sido presidente na ditadura e responsável por medidas equivocadas, ter influenciado a direita brasileira até à sua morte, em 1996, já mais de dez anos após a redemocratização".

Em relação a 2022, Fernando Henrique Cardoso, único que além de Lula ocupou o Palácio do Planalto por oito anos, começou a ditar o ritmo eleitoral logo em maio de 2021, ao participar num encontro muito cordial com o velho rival, registado em simbólica fotografia. Cardoso, father figure do PSDB, partido de centro-direita que por 20 anos rivalizou no poder com o PT, indicava dessa forma que, num duelo entre Lula e Bolsonaro em eventual segunda volta, optaria sem hesitações pelo primeiro, numa correção de rumo face a 2018, quando se declarou neutral na disputa entre o capitão posteriormente eleito e o candidato derrotado Fernando Haddad.

Depois da tal foto simbólica, FHC, como é conhecido no Brasil, esclareceu que abençoaria - na primeira volta - o escolhido pelo seu partido em primárias - João Doria, governador de São Paulo - mas o sinal de união entre os homens que governaram o Brasil por 16 anos, de 1994 a 2010, estava dado. E foi sublinhado nas últimas semanas, com a notícia de um iminente anúncio de Geraldo Alckmin, outrora barão do PSDB, como vice de Lula.

Michel Temer, entretanto, aconselhou o sucessor. Durante a crise de setembro entre Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal, na sequência de discurso do presidente contra juízes da corte, Temer redigiu de próprio punho a carta que selou a pacificação institucional. Já antes dera ordens ao MDB, o seu heterogéneo partido, para não tomar posição contra Bolsonaro em eventual votação de impeachment. "Curiosamente, Bolsonaro, o tal presidente anti-política, aconselhou-se com o presidente mais político de todos, a raposa de bastidores Michel Temer", assinala Vieira.

Outro antigo presidente, Collor de Mello, aproximou-se de Bolsonaro por cálculo político regional. "Collor foi um caso de ex-presidente que passou por período de ostracismo por causa do impeachment, mas hoje, como senador, vê nessa aproximação uma questão de sobrevivência política: quer marcar posição, no campo da direita, no seu estado, Alagoas, onde busca a reeleição".

Dilma Rousseff, que chegou à presidência por influência de um ex-presidente, o antecessor Lula, vive hoje em certa medida esse ostracismo próprio dos presidentes alvo de impeachment - "ainda há muito más recordações na economia do governo dela", diz Vieira. Não foi convidada - ou decidiu não comparecer, dependendo das versões - à reunião pública entre Lula e Alckmin. E, mesmo involuntariamente, tornou-se mais uma ex-presidente a ser notícia.

Depois, há José Sarney, cujo apoio tanto Lula como Bolsonaro cobiçam. "Sarney, cacique estadual no Maranhão e no Amapá, foi presidente do Senado e tem status muito forte entre os oligarcas regionais, dando cartas desde sempre em eleições e não só, após o escândalo do Mensalão no primeiro governo de Lula, fez com o que o seu MDB entrasse no executivo, impedindo eventual impeachment, mais ou menos o que Temer fez agora com Bolsonaro", afirma Vieira.

Entretanto, se nos desviarmos das movimentações terrenas da política, a influência de ex-presidentes no Brasil é notada até no campo da superstição, aludindo à figura ainda hoje mitológica de Getúlio Vargas, como recorda o politólogo. "O Lula está em posição única de poder voltar à presidência 20 anos depois de lá ter chegado pela primeira vez, exatamente o mesmo intervalo de Vargas, que chegou em 1930 e regressou em 1950".

José Sarney

91 anos

Presidente de 1985 a 1990

Retirou-se da vida eleitoral em 2015 mas não da vida política: a sua bênção nos estados que influencia é considerada relevante por todos, de Lula a Bolsonaro

Fernando Collor de Mello

72 anos

Presidente de 1990 a 1992

Senador, aliou-se a Bolsonaro para garantir os votos da direita no seu estado, Alagoas, e ser reeleito para a câmara alta do Congresso

Fernando Henrique Cardoso

90 anos

Presidente de 1995 a 2002

Líder espiritual do PSDB, influencia o partido a cada gesto ou frase. Reuniu-se com Lula, indicando que não está equidistante na disputa de 2022 entre o velho rival e Bolsonaro

Luiz Inácio Lula da Silva

76 anos

Presidente de 2003 a 2010

Candidato ao Planalto, 20 anos depois de eleito pela primeira vez, lidera as sondagens e tenta aumentar a base de apoio ao centro

Dilma Rousseff

74 anos

Presidente de 2011 a 2016

Como os efeitos negativos da sua política económica ainda se fazem sentir, exerce influência menor. Mas é vista pela esquerda como uma corajosa vítima de um golpe parlamentar

Michel Temer

81

Presidente de 2016 a 2018

Bolsonaro solicitou o seu apoio na crise institucional com o Supremo e ele deu-o. Mas o ex-presidente diz que só em junho comunica quem apoia em 2022

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