As personagens fictícias vivem muitas vidas diferentes - e morrem muitas mortes diferentes. A última década e meia de televisão mostrou-nos quase todas as formas possíveis de escangalhar o corpo humano e cessar as funções vitais. Vimos pessoas despedaçadas por zombies e incineradas pelo bafo de dragões; crânios perfurados à garfada (Sons of Anarchy) ou rachados por uma moca de pregos (The Walking Dead); troncos cortados ao meio por serrote (American Horror Story) ou por elevador (Six Feet Under)..A semana em que A Guerra dos Tronos regressa aos ecrãs para despachar criativamente os restos de elenco que ainda sobram (e induzir em metade do hemisfério o pânico de lerem obituários antes do tempo) é uma boa altura para rever outra canção de ferro e fogo sobre a ameaça gelada do norte..The Terror (AMC), talvez a melhor colecção de mortes televisivas de sempre, começa com a mãe de todos os spoilers: uma legenda inicial informa-nos que a história é baseada em factos verídicos e que nenhum dos intervenientes sobreviveu. Os factos verídicos referem-se à Expedição Franklin, o "avião da Malásia" do seu tempo, e um dos vários nobres fracassos que constituem grande parte do projecto de exploração polar levado a cabo pelo Império Britânico no século XIX. Em 1845, dois navios - o HMS Erebus e o HMS Terror - partiram rumo ao Ártico com a missão de localizar uma rota viável entre o Atlântico e o Pacífico, a então pouco mais que hipotética Passagem do Nordeste. A missão falhou, os navios desapareceram sem deixar rasto (os destroços só foram encontrados em 2014 e 2016, respectivamente), e ambas as tripulações morreram..129 vítimas garantidas são um bom ponto de partida, proporcionando uma tela vasta para a imaginação necrológica, e The Terror não poupa esforços na superlativa evocação de todas as maneiras como condições extremas - o frio, a fome, a doença, o medo - podem aniquilar qualquer corpo, por mais inglês que ele seja: malnutrição, hipotermia, afogamento, escorbuto, envenenamento, intoxicação por chumbo, imolação, canibalismo, ou (no elemento sobrenatural repescado ao romance homónimo de Dan Simmons que a série adapta) ser mastigado por uma criatura monstruosa chamada Tuunbaq, uma mistura entre o corpo de um urso-polar e a cabeça de Wayne Rooney..O período vitoriano foi a era de ouro da exploração polar, mas também do tropo literário conhecido por "Cena no Leito de Morte", desde os arrebatamentos líricos de Dickens (a pequena Nell a ser transportada por anjinhos depois do último suspiro) até às grotescas variações de Thomas Hardy (Jude, o Obscuro a morrer sozinho depois de pedir um copo de água a Arabella, que se distraiu à janela com barulhos de festa vindos da rua)..No primeiro episódio, The Terror presta homenagem às suas origens e mantém-se na vastidão gelada do lugar-comum. Um jovem chamado Young começa a tossir sangue aos 5 minutos, e meia hora depois a câmara encontra-o já pálido e emaciado, com o médico de bordo ao lado da cama a prometer-lhe visões de luz e êxtase no momento derradeiro. Os episódios seguintes vão subindo a fasquia fúnebre. O ambiente inóspito funciona como um ácido que dissolve todo o lastro cultural que os marinheiros transportam, permitindo que novas coisas surjam no vazio: momentos de ternura e selvajaria, confessionalismo fraterno e violência cega. Mas quando morre, cada personagem morre sozinha. Desde o cirurgião que se besunta com veneno para escapar a um destino pior, ao criado pessoal que num delírio febril alucina o abandono imaginário do seu capitão, ao marinheiro moribundo apunhalado pelo ex-amante que precisa de carne fresca para se alimentar e já só vê nele um futuro cadáver. A morte mais visceralmente eficaz ocorre no terceiro episódio: 50 segundos de pura desorientação, dos mais obscenos e traumatizantes que a televisão nos ofereceu, filmados como um caleidoscópio surreal de reviravoltas, gemidos e olhares de pânico, e culminando numa perna amputada e num mergulho terminal para um buraco no gelo..via GIPHY.As mortes são chocantes não por serem surpreendentes, mas apenas por serem meticulosamente individuais, e porque a orquestração narrativa reproduz o caos e a variedade das causas. Alguns têm a melhor morte possível, outros a pior; uns morrem por desgaste, outros por incompetência, outros porque merecem, outros por puro azar. O mérito da execução não reside na estrita aderência a uma fórmula (típica dos produtos televisivos genéricos), nem no empenho militante em subvertê-la (típico das séries que almejam, com maior ou menor sucesso, a um estatuto superior), mas sim na paciência para encontrar os pontos de resistência no interior de cada cliché, aplicando apenas a pressão necessária para nos manter sempre na dúvida..Numa série que é, muito óbvia e deliberadamente, sobre morrer, a morte mais prolongada não é de uma pessoa, mas de uma ideia: o projecto imperial britânico. A mitologia nacional inglesa legou ao mundo uma narrativização póstuma da figura do "explorador": excêntricos intrépidos, com nomes como Eustace Jollington-Wolperston, a desbravar as selvas do Congo de fraque e chapéu enquanto afugentavam crocodilos com um guarda-chuva, ou então mártires galantes, sacrificando-se heroicamente pelos companheiros ou por causas maiores.The Terror é suficientemente subtil e escrupuloso para mostrar o ridículo de exportar os rígidos protocolos sociais e hierárquicos para ambientes extremos, mas também para não rejeitar a possibilidade de os mesmos serem a última barreira antes do caos. Apesar disso, não há melhor dramatização dos limites do imperialismo "benigno" do que a sequência em que um inglês chamado Goodsir explica as vantagens económicas do comércio livre com a China a uma nativa inuíte que não compreende uma palavra do que ele diz..Alguns meses depois, o mesmo Goodsir é um cadáver trinchado por ex-camaradas famintos, enquanto a nativa inuíte está de regresso à sua aldeia e à sua tribo, cheia de saúde - uma prova tangível de que o problema nunca foi um ambiente inóspito onde ninguém consegue sobreviver, mas sim que aqueles turistas específicos nunca aprenderam a fazê-lo.
As personagens fictícias vivem muitas vidas diferentes - e morrem muitas mortes diferentes. A última década e meia de televisão mostrou-nos quase todas as formas possíveis de escangalhar o corpo humano e cessar as funções vitais. Vimos pessoas despedaçadas por zombies e incineradas pelo bafo de dragões; crânios perfurados à garfada (Sons of Anarchy) ou rachados por uma moca de pregos (The Walking Dead); troncos cortados ao meio por serrote (American Horror Story) ou por elevador (Six Feet Under)..A semana em que A Guerra dos Tronos regressa aos ecrãs para despachar criativamente os restos de elenco que ainda sobram (e induzir em metade do hemisfério o pânico de lerem obituários antes do tempo) é uma boa altura para rever outra canção de ferro e fogo sobre a ameaça gelada do norte..The Terror (AMC), talvez a melhor colecção de mortes televisivas de sempre, começa com a mãe de todos os spoilers: uma legenda inicial informa-nos que a história é baseada em factos verídicos e que nenhum dos intervenientes sobreviveu. Os factos verídicos referem-se à Expedição Franklin, o "avião da Malásia" do seu tempo, e um dos vários nobres fracassos que constituem grande parte do projecto de exploração polar levado a cabo pelo Império Britânico no século XIX. Em 1845, dois navios - o HMS Erebus e o HMS Terror - partiram rumo ao Ártico com a missão de localizar uma rota viável entre o Atlântico e o Pacífico, a então pouco mais que hipotética Passagem do Nordeste. A missão falhou, os navios desapareceram sem deixar rasto (os destroços só foram encontrados em 2014 e 2016, respectivamente), e ambas as tripulações morreram..129 vítimas garantidas são um bom ponto de partida, proporcionando uma tela vasta para a imaginação necrológica, e The Terror não poupa esforços na superlativa evocação de todas as maneiras como condições extremas - o frio, a fome, a doença, o medo - podem aniquilar qualquer corpo, por mais inglês que ele seja: malnutrição, hipotermia, afogamento, escorbuto, envenenamento, intoxicação por chumbo, imolação, canibalismo, ou (no elemento sobrenatural repescado ao romance homónimo de Dan Simmons que a série adapta) ser mastigado por uma criatura monstruosa chamada Tuunbaq, uma mistura entre o corpo de um urso-polar e a cabeça de Wayne Rooney..O período vitoriano foi a era de ouro da exploração polar, mas também do tropo literário conhecido por "Cena no Leito de Morte", desde os arrebatamentos líricos de Dickens (a pequena Nell a ser transportada por anjinhos depois do último suspiro) até às grotescas variações de Thomas Hardy (Jude, o Obscuro a morrer sozinho depois de pedir um copo de água a Arabella, que se distraiu à janela com barulhos de festa vindos da rua)..No primeiro episódio, The Terror presta homenagem às suas origens e mantém-se na vastidão gelada do lugar-comum. Um jovem chamado Young começa a tossir sangue aos 5 minutos, e meia hora depois a câmara encontra-o já pálido e emaciado, com o médico de bordo ao lado da cama a prometer-lhe visões de luz e êxtase no momento derradeiro. Os episódios seguintes vão subindo a fasquia fúnebre. O ambiente inóspito funciona como um ácido que dissolve todo o lastro cultural que os marinheiros transportam, permitindo que novas coisas surjam no vazio: momentos de ternura e selvajaria, confessionalismo fraterno e violência cega. Mas quando morre, cada personagem morre sozinha. Desde o cirurgião que se besunta com veneno para escapar a um destino pior, ao criado pessoal que num delírio febril alucina o abandono imaginário do seu capitão, ao marinheiro moribundo apunhalado pelo ex-amante que precisa de carne fresca para se alimentar e já só vê nele um futuro cadáver. A morte mais visceralmente eficaz ocorre no terceiro episódio: 50 segundos de pura desorientação, dos mais obscenos e traumatizantes que a televisão nos ofereceu, filmados como um caleidoscópio surreal de reviravoltas, gemidos e olhares de pânico, e culminando numa perna amputada e num mergulho terminal para um buraco no gelo..via GIPHY.As mortes são chocantes não por serem surpreendentes, mas apenas por serem meticulosamente individuais, e porque a orquestração narrativa reproduz o caos e a variedade das causas. Alguns têm a melhor morte possível, outros a pior; uns morrem por desgaste, outros por incompetência, outros porque merecem, outros por puro azar. O mérito da execução não reside na estrita aderência a uma fórmula (típica dos produtos televisivos genéricos), nem no empenho militante em subvertê-la (típico das séries que almejam, com maior ou menor sucesso, a um estatuto superior), mas sim na paciência para encontrar os pontos de resistência no interior de cada cliché, aplicando apenas a pressão necessária para nos manter sempre na dúvida..Numa série que é, muito óbvia e deliberadamente, sobre morrer, a morte mais prolongada não é de uma pessoa, mas de uma ideia: o projecto imperial britânico. A mitologia nacional inglesa legou ao mundo uma narrativização póstuma da figura do "explorador": excêntricos intrépidos, com nomes como Eustace Jollington-Wolperston, a desbravar as selvas do Congo de fraque e chapéu enquanto afugentavam crocodilos com um guarda-chuva, ou então mártires galantes, sacrificando-se heroicamente pelos companheiros ou por causas maiores.The Terror é suficientemente subtil e escrupuloso para mostrar o ridículo de exportar os rígidos protocolos sociais e hierárquicos para ambientes extremos, mas também para não rejeitar a possibilidade de os mesmos serem a última barreira antes do caos. Apesar disso, não há melhor dramatização dos limites do imperialismo "benigno" do que a sequência em que um inglês chamado Goodsir explica as vantagens económicas do comércio livre com a China a uma nativa inuíte que não compreende uma palavra do que ele diz..Alguns meses depois, o mesmo Goodsir é um cadáver trinchado por ex-camaradas famintos, enquanto a nativa inuíte está de regresso à sua aldeia e à sua tribo, cheia de saúde - uma prova tangível de que o problema nunca foi um ambiente inóspito onde ninguém consegue sobreviver, mas sim que aqueles turistas específicos nunca aprenderam a fazê-lo.