A crise pode ser migratória, com mais de oito mil imigrantes ilegais a entrar no enclave espanhol de Ceuta em apenas dois dias (mais de 5600 já foram entretanto devolvidos a Marrocos), mas por detrás do desespero de homens, mulheres e crianças esconde-se uma disputa diplomática. E um rosto: Brahim Ghali, de 71 anos. O líder da Frente Polisário, que reivindica o direito à autodeterminação do Saara Ocidental, deu entrada num hospital espanhol, sob um nome falso, para receber tratamento contra a covid-19 e isso irritou os marroquinos, que resolveram abrir as fronteiras em retaliação contra Madrid..O Saara Ocidental, um território que tem o triplo do tamanho de Portugal e é praticamente só deserto, foi colónia espanhola até 1975. Depois, veio a ocupação marroquina, com a Frente Polisário, que tinha nascido para lutar inicialmente contra a presença espanhola, a empreender uma guerra de guerrilha. As Nações Unidas negociaram um cessar-fogo em 1991, com Marrocos a assumir o controlo da grande maioria do território e a promessa de um referendo, que nunca se chegou a concretizar. Considerados terroristas por Rabat, que aceita dar maior autonomia ao Saara Ocidental, mas não a independência, a Frente Polisário conta com o apoio da Argélia, que acolhe o governo saarauí no exílio, além de mais de 180 mil refugiados..A República Árabe Saarauí Democrática é reconhecida por cerca de 40 países, sendo membro da União Africana desde 1982. No final de 2020, antes de Donald Trump deixar a Casa Branca, os EUA reconheceram a soberania marroquina sobre o território, em troca da normalização das relações entre Marrocos e Israel..Ghali, um dos fundadores da Frente Polisário, foi durante três décadas ministro da Defesa da República Árabe Saarauí Democrática, cargo que chegou a conciliar com o de embaixador em Espanha. Foi depois embaixador na Argélia, até ser eleito em 2016 secretário-geral da Frente Polisário e presidente do Saara Ocidental. Em novembro do ano passado, Ghali anunciou o fim do cessar-fogo com Marrocos que durava há 29 anos, acusando Rabat de atacar manifestantes pacíficos..A 23 de abril, a chefe da diplomacia espanhola, Arancha Gonzalez Laya, confirmou a notícia do semanário Jeune Afrique, que dizia que Ghali sofria de cancro e estava hospitalizado em Espanha. A ministra disse que a transferência da Argélia para Espanha tinha sido "por motivos estritamente humanitários para receber tratamento médico". Foi a própria Frente Polisário que confirmou que o problema tinha sido a covid-19, apesar de os media marroquinos dizerem que sofre de outros problemas de saúde, como hepatite C e cirrose, e já terá sido operado a um cancro no cólon..Quando tiver alta, Ghali terá que enfrentar a justiça espanhola, tendo sido chamado a declarar diante da Audiência Nacional a 1 de junho. Em causa estão dois processos contra si, abertos em Espanha. Num deles é acusado por um grupo de dissidentes da Frente Polisário de ser responsável por "uma campanha para eliminar as elites saarauís de origem espanhola com a intenção de romper os laços entre as diversas tribos" e "ter um domínio mais direto e efetivo sobre a população". Algumas vítimas apontam o próprio Ghali como o seu torturador. O segundo processo vem de uma queixa apresentada pelo bloguer Fadel Mihdi Breica por alegada detenção ilegal, tortura e crimes contra a humanidade..Quando Espanha confirmou a presença de Ghali no país, garantindo que o caso não impedia ou perturbava as excelentes relações com Marrocos, Rabat convocou o embaixador espanhol para exigir explicações. E avisou mais tarde que este "ato premeditado" teria "consequências", com a crise de migrantes desta semana a ser considerada uma retaliação. O ministro dos Direitos Humanos marroquino, Mustafá Ramid, considerou ontem que Espanha sabia "que o preço de subestimar" Marrocos "era muito caro", após decidir acolher um "inimigo" do seu povo..Ceuta, tal como o vizinho enclave de Melilla, está protegida por vedações, arame farpado e vigilância permanente, mas isso não impede que os imigrantes ilegais tentem entrar. Ainda no passado 1 de janeiro, mais de mil vindos da África subsariana tentaram escalar a cerca para entrar no território, onde vivem 84 mil pessoas. A diferença para os acontecimentos de segunda e terça-feira, está no facto de Marrocos ter fechado os olhos. A palavra espalhou-se e mais tentaram a sua sorte. Assim que Rabat retomou os controlos na fronteira, pressionada por Espanha com o apoio da União Europeia, a situação acalmou..susana.f.salvador@dn.pt