Boutros, 'o Africano' que negociou a paz com Israel
Foi o primeiro natural de um país africano a ocupar o cargo de secretário-geral das Nações Unidas, tendo exercido funções de 1 de janeiro de 1992 a 31 de dezembro de 1996. Defensor de um pan-africanismo pluricultural e plurirreligioso, ganhou o cognome de Boutros, o Africano e coube-lhe gerir aquela organização internacional no imediato pós-Guerra Fria.
Eleito, aos 69 anos, sexto secretário-geral da ONU e primeiro a não cumprir um segundo mandato, Boutros Boutros-Ghali teve de conviver com a desagregação da Jugoslávia, o genocídio no Ruanda e as guerras civis em Angola e na Somália. Os dois primeiros conflitos vão pesar sobremaneira em Boutros--Ghali. Do primeiro fica a memória da humilhação de ver capacetes--azuis feitos reféns pelas forças do sérvio Radovan Karadzic e a irritação do então presidente Bill Clinton pelo facto de o diplomata egípcio se opor aos bombardeamentos da NATO na Bósnia. O que acabará por lhe custar o segundo mandato, quando os Estados Unidos vetaram o nome de Boutros-Ghali, abrindo caminho à eleição de Kofi Annan.
Do genocídio do Ruanda fica o fracasso da operação da ONU no país e a revelação de, enquanto no governo, ter autorizado a venda de armas àquele país, em 1990, usadas no genocídio de 1994. Quando Linda Melvern, a jornalista que descobriu o negócio (avaliado em 26 milhões de dólares), interrogou em 1999 o então ex-secretário-geral da ONU, a resposta foi infeliz: "Uns milhares de armas não teriam feito qualquer diferença."
Perante a dimensão dos conflitos e a natureza dos desafios que se colocam à ONU, elabora o relatório "Uma Agenda para a Paz", em 1992, no qual delineia os princípios de ação para as crises pós-Guerra Fria e advoga maior autonomia e nova dinâmica para a organização. As suas tentativas de reforma vão gerar anticorpos e pouco ou nada será feito.
Boutros-Ghali nasceu a 14 de novembro de 1922 na capital egípcia, numa família da minoria cristã copta. O seu avô, Boutros Pacha, é visto como um dos políticos que abriram o Egito ao Ocidente, sendo primeiro-ministro entre 1908 e 1910, quando foi assassinado por um nacionalista. O ataque foi motivado pelo facto de ter sido Boutros Pacha a negociar a cedência do Sudão, então sob administração do Cairo, à Grã-Bretanha em 1899. No túmulo daquele lê-se a inscrição: "Deus é testemunha de que fiz tudo o possível para servir o meu país" - ideia que o neto procurou concretizar sob diferentes formas. Escolhido pelo presidente Anwar Sadat para a pasta dos Negócios Estrangeiros, em 1977, Boutros-Ghali integrou a missão que negociou os Acordos de Camp David, assinados em 1979 pelo primeiro-ministro israelita Menachem Begin e por Sadat . Este será assassinado por islamitas, visto como traidor, como o avô de Boutros-Ghali, por ter feito a paz com Israel. Será, aliás, o diplomata a redigir o histórico discurso que Sadat pronunciou no Parlamento israelita a 20 de novembro de 1977, antes ainda de Camp David.
Francófono declarado e casado com Leia Maria Boutros-Ghali, de ascendência judaica mas convertida ao catolicismo na juventude, falou em 1995 ao The New York Times sobre a sua relação: "Quando estamos zangados, falamos em árabe. Quando falamos de negócios, fazemo-lo em inglês. Quando estamos bem, falamos em francês." O casal não tem filhos.
Crítico declarado do pan-arabismo de Nasser, Boutros-Ghali estudou Direito em Paris, foi professor desta área na Universidade do Cairo e é autor de vários tratados sobre relações internacionais. Integrou a direção do Partido Nacional Democrático (dissolvido em 2011, após a queda de Mubarak) entre 1980 e o início dos anos 1990. Morreu ontem, aos 93 anos, num hospital dos arredores do Cairo, onde fora internado no dia 11 depois de partir uma perna.