Bósnia vai às urnas após "a mais suja campanha" desde o fim da guerra
As eleições gerais de domingo na Bósnia-Herzegovina deverão voltar a confirmar a hegemonia dos "partidos étnicos" que dominam a cena política da ex-república jugoslava desde 1990, e quando se adensam os sinais de crise nesta volátil região dos Balcãs.
Num escrutínio muito complexo, à semelhança do país, os cerca de três milhões de eleitores são convocados para renovar de quatro em quatro anos as duas câmaras do parlamento central, os parlamentos das duas "entidades", a Federação da Bósnia-Herzegovina e a Republika Srpska (RS, a entidade sérvia bósnia), dez assembleias cantonais da Federação e o cantão do distrito de Brcko, eleger os três membros da presidência colegial rotativa da Bósnia-Herzegovina (um bosníaco muçulmano, um sérvio e um croata) e ainda o Presidente da RS.
Neste contexto, as perspetivas oferecidas aos eleitores pelas forças "cidadãs" e anti-nacionalistas são quase nulas, após ter fracassado a perspetiva de uma aliança eleitoral que desafiasse os partidos "étnicos" de muçulmanos (bosníacos), sérvios e croatas que se impuseram desde o fim violento da Jugoslávia e o início da guerra civil nesta antiga república, entre 1992 e 1995.
A esquerda bósnia volta a surgir dividida em vários partidos e com deficiente implantação local.
Nas eleições municipais de 2016 diversos intelectuais do país apelaram à unificação das forças cívicas em torno de um projeto comum centrado na reforma de um sistema eleitoral que continua a beneficiar os três principais partidos nacionalistas, mas sem resultado.
As pressões para a unificação ou uma aliança das forças políticas alternativas intensificaram-se no início de 2018 com a aproximação do escrutínio de domingo, já definido como "histórico" por existir a possibilidade real de Milorad Dodik e Dragan Covic, os dirigentes nacionalistas sérvio e croata bósnios, ocuparem dois dos três lugares da presidência colegial, à qual também concorre o muçulmano Sefik Dzaferovic.
De novo uma oportunidade perdida, e num contexto internacional pouco animador, assinalado pela crise de legitimidade da União Europeia (UE) e o aumento das tensões no espaço da ex-Jugoslávia.
Os bósnios são cidadãos da Bósnia-Herzegovina (3.531.159 habitantes segundo o censo de 2013), sejam bosníacos muçulmanos (50,1%), sérvios ortodoxos (30,8%) ou croatas católicos (15,4%).
Os partidos étnicos continuam a dominar o cenário político interno.
Na RS, impõe-se a Aliança dos Sociais-Democratas Independentes (SNSD) de Dodik , apesar de ameaçada pela coligação da oposição Aliança para a Vitória.
E o mesmo sucede com a União Democrática Croata da Bósnia-Herzegovina (HDZ) do ultranacionalista Dragan Covic, e o Partido de Ação Democrática (SDA, muçulmano bosníaco), liderado por Bakir Izetbegovic, filho de Alija Izetbegovic, que liderou a secessão da Bósnia em 1991, antecâmara da guerra civil.
A complexidade do escrutínio na Bósnia-Herzegovina, em profunda crise económica e social, poderá ainda acentuar-se nos próximos escrutínios, e quando na Federação croato-bosníaca o HDZ tem exigido uma entidade própria para os croatas.
O emaranhado esquema administrativo bósnio é uma herança do acordo de Dayton (Estados Unidos) que pôs termo à guerra intercomunitária (1992-95, 100.000 mortos), e segundo os seus críticos contribuiu para tornar hoje a Bósnia num país disfuncional e onde as mulheres, jovens e minorias nacionais permanecem excluídos da vida política.
Ao insistir na necessidade de "falar a uma única voz", a União Europeia (UE) tem reclamado a existência de um "mecanismo de coordenação", um objetivo que permanece longínquo.
O país, assolado por uma crescente emigração, possui 13 governos (governo central, as duas entidades sérvias e croato-bosníaca e os dez cantões).
Mais de 212.000 pessoas são funcionários públicas, e segundo o Banco central os seus salários absorvem cerca de um terço das receitas fiscais.
As duas entidades dispõem de larga autonomia, nas forças de segurança, educação, economia ou saúde. O governo central é responsável pelas Forças Armadas, finanças, justiça, comércio externo e diplomacia, mas as contradições no seu interior são permanentes, conduzindo à paralisia.
Os croatas católicos são um dos "povos constitutivos" da Bósnia, com os sérvios ortodoxos e os bosníacos muçulmanos.
Os sérvios são maioritários na RS (81,5%), mas os croatas são minoritários (22,4%) na sua federação com os bosníacos.
Assim, têm exigido uma "reorganização territorial" recusada pelos muçulmanos, um outro foco de tensão interno.
desde o fim da guerra
Diversos analistas descreveram esta campanha como "a mais suja" na Bósnia desde o final da guerra, com um abundante discurso do ódio dirigido contra os opositores políticos da mesma "etnia", e não contra os representantes políticos dos dois outros "povos constitutivos".
Em 1995, o Conselho de segurança da ONU designou um "Alto Representante" mandatado peara garantir a paz e a estabilidade. Teoricamente, pode demitir eleitos e intervir na legislação, mas há vários que não utiliza estes poderes.
A dissolução desta função, admitida desde 2007, tem sido sucessivamente adiada.
No final de setembro, a embaixada dos Estados Unidos em Sarajevo rejeitou as acusações dos líderes nacionalistas sérvios sobre uma alegada interferência de Washington nas eleições do próximo domingo.
Milorad Dodik, considerado "pró-Rússia", acusou os EUA e o Reino Unido de apoiarem os seus opositores e influenciarem os resultados eleitorais, encarados pelos círculos internacionais como um momento decisivo sobre a eventual perspetiva de uma adesão da Bósnia à UE e NATO.
Para além da complexa e volátil situação interna, a Bósnia-Herzegovina, e toda esta região dos Balcãs, permanecem alvo dos interesses geopolíticos das potências rivais envolvidas nesta região da Europa.
Jornalista da Agência Lusa