Bolsonaro promete evangélico para o Supremo mas escolhe católico
Jair Bolsonaro agradou aos eleitores nordestinos e aos partidos assumidamente clientelistas conhecidos como "centrão", ao optar pelo desembargador Kássio Nunes, do estado do Piauí, o novo juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) em substituição do quase reformado Celso de Mello. Mas irritou outras franjas da sua heterogénea base de apoio - Nunes não é evangélico, nem particularmente conservador, é crítico da Operação Lava-Jato e contrário à prisão após condenação em segunda instância, expediente que mantém, por exemplo, o antigo presidente Lula da Silva em liberdade.
"A condição de petista [simpatizante do Partido dos Trabalhadores (PT)] do desembargador é ostensiva (...). É petista de carteirinha, com ampla penetração nos gabinetes de Brasília, dos quais esconde a sua identidade político-partidária", dizia uma mensagem, a que a CNN Brasil teve acesso, enviada por radicais de direita para o telemóvel do próprio presidente da República.
Entre as críticas violentas a Nunes bombardeadas nas redes sociais, meio a que Bolsonaro costuma ser permeável, são citadas, além das posições do juiz sobre a prisão em segunda instância, o voto contra a deportação do terrorista italiano de extrema-esquerda Cesare Battisti, a sua indicação ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) na gestão de Dilma Rousseff e até ter autorizado no seu tribunal o STF a ter como cardápio "medalhões de lagosta servidos com molho de manteiga queimada, pato assado com molho de laranja ou de azeitonas, vinhos brancos Chardonnay com no mínimo quatro prémios internacionais, caipirinha com 'cachaça de alta qualidade', envelhecida em barris de madeira nobre por um ou três anos".
"Esse é um indicado ao Supremo com visão de futuro: libera hoje a lagosta que comerá amanhã", ironizou o ex-polícia e escritor Jorge Pontes.
A hashtag Conservador No Supremo Já, entretanto, tornou-se na manhã de quinta-feira (dia 1) um dos assuntos mais comentados na rede social Twitter, com cerca de 78 mil citações.
O deputado Paulo Eduardo Martins, do Partido Social Cristão, disse que "o Sr. Kassio Nunes não corresponde às necessidades do Brasil, pois segue o padrão atual da corte que tem sido epicentro da nossa instabilidade política. Um jurista de carreira densa, conservador e discreto é o que precisamos. Isso o Sr. Nunes não é. Espero que o PR repense".
DestaquedestaqueBolsonaro visa agradar ao Nordeste, região do país tradicionalmente fiel a Lula e ao PT
"Apesar de o povo brasileiro ser maioritariamente conservador, não há um único representante dessa corrente de pensamento no STF", escreveu Leandro Ruschel, influenciador de direita. "Jair Bolsonaro tem a oportunidade de mudar esse cenário."
Os elogios à escolha do juiz nascido há 48 anos em Teresina, capital do estado nordestino do Piauí, com mestrado na Universidade Autónoma de Lisboa, partem, entretanto, de Ciro Nogueira, senador do partido Progressistas, também natural de Teresina, e considerado um dos líderes do "centrão", o grupo que apoia todos os governos desde que receba em troca nacos de poder público. "Ele é considerado um dos desembargadores federais mais produtivos entre os seus pares e todos os que conhecem a sua trajetória sabem da competência e do compromisso dele com o trabalho", disse Nogueira.
Bolsonaro visa agradar ao nordeste, região do país tradicionalmente fiel a Lula e ao PT mas onde o atual presidente tem ganho popularidade desde a pandemia graças à distribuição de um auxílio emergencial às populações mais pobres; e ao "centrão", conjunto de partidos numericamente decisivos no Congresso Nacional, de forma a ver aprovados os seus projetos e rejeitado um eventual impeachment.
Essas posições - concessão de subsídios e estabelecimento de alianças com políticos assumidamente clientelistas - vão, porém, no sentido oposto ao que o candidato Bolsonaro prometera em campanha eleitoral.
O nome de Kássio Nunes surgiu após reunião na terça-feira, dia 29, entre o presidente e o desembargador na casa do juiz do STF Gilmar Mendes sem a presença de Luiz Fux, recém-nomeado presidente da instituição. Fux, segundo relatos do jornal Folha de S. Paulo, ficou irritado por só saber dessa reunião a posteriori e por Nunes não vir do segundo tribunal mais importante do país, o STJ.
A escolha de Gilmar Mendes como avalista de Nunes serve, por outro lado, como farpa política em Sérgio Moro, o ex-ministro da Justiça que abandonou o governo de Jair Bolsonaro em rota de colisão com o presidente - Mendes é o juiz do STF mais crítico dos métodos da Operação Lava-Jato.
"Na campanha, [Bolsonaro] falou em aumentar o número de cadeiras do STF e prometeu nomear "dez do nível do Sérgio Moro" para a corte. O papo ajudou a colar a sua candidatura à imagem da operação. O presidente não demorou a trair quem acreditou na conversa - a começar pelo próprio Moro", escreveu no jornal Folha de S. Paulo o colunista Bruno Boghossian.
Os "lava-jatistas" que ainda apoiam o governo e os radicais de direita que dominam a célula bolsonarista na internet não têm, entretanto, tanta razão de queixa da escolha do presidente como o segmento evangélico.
Em julho de 2019, Bolsonaro prometeu: "Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico. O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares [Alves, ministra]: "Nós somos terrivelmente cristãos." E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois juízes para o STF. Um deles será terrivelmente evangélico."
Esperava-se que o juiz "terrivelmente evangélico" fosse já o primeiro, na sequência da reforma compulsória de Celso de Mello, prestes a completar 75 anos (ao contrário do que se passa no Supremo dos Estados Unidos, o cargo de juiz da suprema corte brasileira não é vitalício). No entanto, as lideranças protestantes, um dos pilares mais ativos no apoio ao governo, vão ter de esperar pelo próximo ano, quando é a vez de o juiz Marco Aurélio Mello se aposentar - Kássio Nunes é católico.
André Mendonça, o pastor presbiteriano que substituiu Sérgio Moro no Ministério da Justiça, depois de ter sido apontado como primeira escolha para o lugar de Celso de Mello, terá sido assim um dos mais frustrados com a opção por Nunes. Marcelo Bretas, juiz encarregado da Lava-Jato no Rio de Janeiro, também evangélico, idem.
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos lançou uma nota a propósito: "Esperamos que, no cenário brasileiro, em que se avizinha a nomeação para um cargo vago no STF, o presidente Jair Bolsonaro indique alguém com comprovado histórico conservador, especialmente em relação aos valores pró-vida e pró-família, como ele mesmo se tem apresentado aos cidadãos brasileiros, bem como uma trajetória que demonstre respeito às instituições democráticas e ao Estado de direito, e compromisso com a proteção dos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade religiosa e à liberdade de expressão."
Silas Malafaia, o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo que casou Jair e Michelle Bolsonaro, disse saber esperar. "Frustração haverá se o próximo juiz do STF não for evangélico, se ele não cumprir a palavra."
"Nenhum líder e nem a bancada evangélica [grupo suprapartidário de deputados também chamado de Bancada da Bíblia] pediram ao presidente um 'cara' no STF. Ele é que disse em várias reuniões com lideranças das igrejas e também para a imprensa que escolheria alguém terrivelmente evangélico. Se ele não fizer isso, aí sim, haverá uma tremenda frustração."
"Não tenho juízo de valor a fazer sobre esse nome [Kássio Nunes], porque eu não o conheço", rematou.
O processo de escolha de juízes para o STF não obedece a critérios muito elaborados: aos presidentes da República é exigido apenas escolher alguém com mais de 35 anos e menos de 65, com "reputação ilibada" e "saber jurídico"; escolhido o magistrado, a maioria absoluta do Senado, 41 senadores, deve aprová-lo em votação após entrevistas.
Além de Celso de Mello, nomeado por José Sarney, que completa 75 anos no dia 1 de novembro e por isso deixa uma vaga na corte, fazem parte do STF os juízes Marco Aurélio Mello (nomeado por Collor de Mello), Gilmar Mendes (nomeado por Fernando Henrique Cardoso), Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia, Dias Toffoli (nomeados por Lula), Luiz Fux, Rosa Weber, Luiz Roberto Barroso, Edson Fachin (nomeados por Dilma) e Alexandre de Moraes (nomeado por Michel Temer).