Ministra do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome nos governos de Dilma Rousseff e hoje professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Tereza Helena Gabrielli Barreto Campell, nascida há 58 anos, em Descalvado, 250 km a norte de São Paulo, fala de fome no Brasil com a autoridade de quem baixou a taxa de insegurança alimentar no país aos números mais baixos de sempre: a meio do seu mandato, o país saiu, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, do Mapa da Fome, para onde, segundo as últimos dados, pode regressar agora..O principal culpado, acusa, é, mais do que a pandemia, a gestão do combate à doença do governo de Jair Bolsonaro: por se recusar a comprar vacinas, por atrasar medidas de apoio a micro e pequenas empresas e por confundir medidas de saúde pública, como o auxílio emergencial concedido aos mais carenciados, com incentivo a sair de casa, propagando o covid-19..Em entrevista ao DN, ela afirma que "os empresários que exigem a reabertura dos seus negócios deviam era exigir a vacina já"..Há um ano, previu que a pandemia no Brasil seria um "genocídio". Hoje o epíteto "genocida" colou-se a Bolsonaro. Acha que acertou no prognóstico ou foi pior ainda do que pensava? Acho que está sendo pior do que o meu pior pesadelo. O governo Bolsonaro errou em três frentes: primeira, ao negar, no que pôde, as evidências científicas, e ao tomar a posição, contrária aos outros países, de não comprar vacinas, o que gerou o que estamos vendo; segunda, atrasou, no que pôde, mesmo as medidas que concordou em adotar, como a oferta de crédito às micro e pequenas empresas, que quando chegou já essas empresas tinham falido - no Brasil, entre 700 mil a um milhão de micro ou pequenas empresas fecharam as portas definitivamente, ou seja, não voltam após o regresso da pandemia por negligência do governo; terceira, aquilo que, forçado pelas oposições, ele implementou, o Auxílio Emergencial no valor de 600 reais [cerca de 90 euros], que era o equivalente a uma cesta básica [cabaz de compras], era uma medida de saúde pública para que essa população pudesse ficar em casa e evitasse o contágio, não era uma medida clássica keynesiana para incentivar a economia. Mas o governo entendeu-a como tal e passou a estimular as pessoas a ir para a rua, fazer compras, procurar emprego. E hoje estamos nesse patamar de mais de 3000 mortos por dia por incompetência completa desse governo que é, como disse há um ano, genocida..Mas esse Auxílio Emergencial, apesar de tudo, salvou o Brasil de uma crise económica de proporções ainda mais catastróficas. O governo, primeiro, não queria dar auxílio emergencial, depois, propôs 200 reais [cerca de 30 euros] e, finalmente, deu 600 [cerca de 90] só porque foi obrigado após a aprovação desse valor no Congresso. Entretanto, embora devesse ter sido encarada como medida de saúde pública para evitar que as pessoas saíssem de casa, teve, claro, impacto económico, porque o desemprego, que já era alto antes, aumentou na pandemia, e as cerca de 30 milhões de famílias que tiveram queda abrupta ou perda total de rendimentos por causa da covid-19 puderam, graças aos 600 reais, sobreviver. Com isso, a economia moveu-se: conforme estudo da economista Laura Carvalho, da Universidade de São Paulo, o PIB teria caído o dobro sem o Auxílio Emergencial. Depois, o governo reduziu o valor do auxílio para 300 reais [cerca de 45 euros], o que, por ser insuficiente, obrigou as pessoas a irem para a rua procurar emprego, e, finalmente, a 31 de dezembro interrompeu-o, o que foi um erro violento porque ninguém, por decreto, estabelece o final da pandemia. Sem rendimento, a população, desesperada, está na rua, piorando a pandemia. E agora o governo lançou o que chamou de "proposta de emenda constitucional emergencial", que trata de congelar salário mínimo, iniciar privatizações e criar um teto para proibir que os parlamentares de esquerda tentem expandir o auxílio emergencial..Bolsonaro diz que ao estimular o trabalho e não o isolamento é ele quem zela pelos mais pobres. Faz sentido? Nenhum. Ao não gerar linhas de crédito para os empresários, ao não garantir recursos para manter empregos e ao não prolongar o auxílio emergencial, o governo acabou jogando a população numa situação de miséria. Hoje, parte dos empresários é contra o isolamento social e o fecho do comércio porque acha que isso prejudica o negócio deles. Não: o que prejudica o negócio deles é o governo não ter comprado vacinas. Em vez de estarem a pedir para abrir os negócios deviam estar a pedir "vacina já", deviam estar a pedir uma saída sustentável, deviam estar a pedir um lockdown sério, sem esse abre e fecha constante. E a população em geral devia estar a pedir recursos para poder ficar em casa..Que dados tem sobre a fome no Brasil no momento? Segundo pesquisa do instituto Data Favela, o rendimento da população das favelas caiu pela metade. E da parte da população que assume não estar ficando em casa a cumprir o isolamento social, 78% diz que está na rua porque precisa de trabalhar porque a família está já a passar fome. Ou seja, a falta do Auxílio Emergencial manda essas pessoas, que poderiam ficar em casa, para a rua - o que é dramático. A fome já tinha voltado ao Brasil: em 2018, antes da pandemia, havia 36,7% da população em insegurança alimentar, mais do que em 2004, início do Governo Lula, quando era de 34,9%. Imagine os dados pós-pandemia com os milhões de famílias e de crianças já em condição de subnutrição... [segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nos governos do PT a insegurança alimentar caiu para 30,2% em 2009, e para 22,6%, em 2014, já sob gestão de Tereza Campello, o que fez com que a ONU retirasse o Brasil do Mapa da Fome]..O PT apresentou um "Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil". O que é? Foi elaborado na Fundação Perseu Abramo, think tank do partido e não é, ao contrário do que se julga, um plano eleitoral. Como o PT é oposição responsável, fez esse plano para provar de que havia saídas não apenas para enfrentar a pandemia como também para sair dela em patamares sustentáveis com propostas do próprio Auxílio Emergencial, de ampliação do Bolsa Família, de criação de cinco milhões de empregos emergenciais, de garantia de acesso à internet para crianças de famílias de baixos rendimentos, de transição para uma indústria verde, de desenvolvimento de políticas sociais..Um ponto do plano naturalmente polémico é o da taxação dos milionários... Mas esse ponto é cada vez menos polémico, tanto aqui, quanto no mundo. O projeto não taxa a classe média-alta mas sim os muito ricos, pessoas que têm um património de mais de 10 milhões de reais [cerca de 1,5 milhões de euros], ou seja, 0,03% dos brasileiros. Fora do Brasil essa medida gera consenso até entre empresários, não tanto no Brasil, porque a elite aqui é, lamentavelmente, muito atrasada. Mas acreditamos que os setores das classes médias e médias-altas, depois de entenderem que não estamos a falar deles, adiram à ideia..dnot@dn.pt