Bolsonaro já irritou meio mundo e ainda nem tomou posse

Ao anunciar a embaixada em Jerusalém levou o Egito a cancelar visita oficial. Alinhamento aos EUA gerou reação dura da China. Prioridade ao Chile melindrou a Argentina. E a UE e a ONU estão de pé atrás.
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Vinte empresários brasileiros já estavam confortavelmente instalados num hotel do Cairo à espera de que o ministro das relações exteriores Aloysio Ferreira se juntasse a eles quando chegou a notícia de que o Egito cancelara a visita oficial do Brasil ao país árabe. Motivo: o anúncio de Jair Bolsonaro de que vai trocar a sede da embaixada em Israel de Telavive para Jerusalém. Os egípcios nem quiseram ouvir que quem dirige o país ainda é (o descendente de sírios) Michel Temer porque com geopolítica, sobretudo naquela região, não se brinca. Bolsonaro só toma posse a 1 de janeiro mas já vai se comportando como um elefante numa loja de porcelanas na gestão da política externa.

"Mudar a embaixada para Jerusalém não muda absolutamente nada a favor do Brasil. Muito ónus para nenhum bónus. Só a Guatemala e os EUA de Donald Trump fizeram isso", lembrou a colunista de O Estado de S. Paulo Eliane Cantanhêde. Os países árabes são o segundo maior comprador mundial de proteína animal brasileira e o Brasil tem um superavit nas trocas comerciais com a região de 17,7 mil milhões de dólares. Israel importa 28 vezes menos produtos brasileiros. Bolsonaro, entretanto, também já criticou a existência e a localização da embaixada da Palestina em Brasília. "O problema é que ela está muito próxima do Palácio do Planalto, nenhuma embaixada pode estar assim tão próxima do presidente da República", disse. Antes, em entrevista à imprensa israelita, havia afirmado que "a Palestina primeiro precisa ser um Estado para que tenha direito a embaixada".

"A manutenção da ordem global liberal que os EUA criaram também nos beneficia mas isso não implica sermos um cachorrinho de Trump", afirmou a propósito da posição de Bolsonaro sobre Israel o articulista Joel Pinheiro da Fonseca, no Folha de S. Paulo. No mesmo jornal, o professor de Relações Internacionais Matias Spektor elenca três fiascos recentes da política de alinhamento do Brasil à Casa Branca, em 1961, com João Goulart e John Fitzgerald Kennedy, em 1964, com os generais da ditadura militar e Lyndon Johnson, e em 1989, com Fernando Collor de Mello e George Bush pai.

O presidente eleito, entretanto, mantém-se firme nesse propósito: nesta semana, o deputado federal e seu filho Eduardo Bolsonaro desembarca em Washington para uma agenda que pode incluir encontros com o vice-presidente Mike Pence e o secretário de Estado Mike Pompeo.

Alerta chinês

A política a reboque da Casa Branca instituída por Bolsonaro também irritou a gigante China. Num texto particularmente duro, o jornal estatal China Daily afirma que "ainda que o presidente eleito tenha imitado o presidente dos EUA ao ser vocal e ultrajante para captar a imaginação dos eleitores, não existem razões para que ele copie as políticas de Trump".

O alarme chinês foi aceso ainda durante a campanha, quando o candidato Bolsonaro atacou o que chamou de espírito predador do país asiático, o maior parceiro comercial do país. Mais tarde, já eleito, disse que "a China nunca será dona do Brasil". Desde 2003, empresas chinesas investiram 54,1 mil milhões de dólares em território brasileiro. E segundo o Ministério do Planeamento mais 70,4 mil milhões de dólares são esperados na sequência de projetos já anunciados. Esses projetos, porém, ficaram em compasso de espera por causa das declarações do presidente eleito.

Na América do Sul, Bolsonaro também incomodou o segundo país maior da região e seu principal parceiro comercial no subcontinente, a Argentina. O vencedor das presidenciais anunciou que o Chile, liderado pelo conservador Sebastián Piñera, será o seu primeiro destino oficial, contrariando uma longa tradição, sublinhada nos governos do PT, de começar por visitar Buenos Aires, que hoje até vive sob o governo de direita de Maurício Macri. As cúpulas política e económica do futuro governo veem o Chile, país sul-americano com melhores índices de desenvolvimento humano, como exemplo. "É uma referência, tem boa educação, gera tecnologia, comercializa com todo o mundo, devemos ter a humildade de olhar o Chile com atenção", disse Onyx Lorenzoni, que será o ministro-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, ou seja, o coordenador de toda a área política do executivo.

Paulo Guedes, o superministro das Finanças do novo governo, anunciou entretanto que o Mercosul, mercado comum sul-americano, não será considerado prioritário sem antes ser reformado, gerando apreensão entre parceiros.

Em relação à Venezuela, Bolsonaro disse que se posicionará como firme oposição ao regime de Nicolás Maduro, o que obrigou o general Augusto Heleno, coordenador da área de defesa do futuro governo, a negar intenção de apoiar uma intervenção militar ou de declarar guerra ao país vizinho. Cuba, por sua vez, segundo o novo presidente, deverá deixar de contar com embaixada brasileira, o que gerou preocupações de diplomatas locais partilhadas na imprensa. A diplomacia inquietou-se também com a decisão anunciada pelo sucessor de Temer de fechar todas as embaixadas ociosas do país.

Desconforto europeu

Na Europa, causou desconforto a decisão - ainda não confirmada - de Agricultura e Meio Ambiente serem fundidos num mesmo ministério. A União Europeia é forte importadora de soja mas, por outro lado, dá ênfase à sustentabilidade e à ecologia. A Itália, em particular, ficou satisfeita com a decisão de Bolsonaro de expatriar Cesare Battisti, membro do grupo Proletários Armados do Comunismo, condenado a prisão perpétua no seu país por quatro homicídios. Mas a intenção do governo colide com o Supremo Tribunal Federal, ao qual compete a última palavra.

Ao longo da campanha, Bolsonaro ameaçou com a saída do Brasil da ONU - retificaria mais tarde para "sair do Comité de Direitos Humanos da ONU" - e romper o Acordo de Paris - tema a que não tem voltado.

Observadores atribuem as gafes de Bolsonaro ao facto de ter "um alinhamento, mais do que político, quase psicológico, a Trump", de acordo com Eliane Cantanhêde, e de não ter ninguém na área das relações externas para o aconselhar. O presidente eleito afirma que a escolha do futuro ministro da área está para breve, entre uma série de nomes, e que o principal critério é "ser alguém sem viés ideológico".

G20 em aberto

Provavelmente já com o seu ministro de Relações Exteriores ao lado, Jair Bolsonaro pode estrear-se nos encontros internacionais, informalmente, ao lado de Temer, na próxima reunião do G20 - grupo das economias mais fortes -, no fim do mês. Foi o próprio presidente cessante que anunciou o convite. "Convidei o presidente Bolsonaro, se ele puder, para fazer viagens comigo ao estrangeiro, mencionei até a hipótese do G20, que será no fim do mês. Não sei se ele poderá mas disse-lhe que quando ele quiser podemos ir juntos ao estrangeiro", afirmou Michel Temer, após encontro entre ambos em Brasília.

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