Hoje termina na Praia Grande a 23.ª edição do Sintra Portugal Pro, a mais antiga etapa do Circuito mundial de bodyboard a realizar-se ininterruptamente, há 23 anos, e a que oferece o maior prize money total (55 500 dólares) de um circuito com oito eventos distribuídos por África do Sul, Austrália, Chile, Brasil e Portugal. O nosso país é mesmo recordista absoluto com três etapas: Sintra, Viana (24 a 30 setembro) e Nazaré (4 a 14 de outubro)..Mas o que é o bodyboard, para muitos um irmão mais novo e enjeitado do surf? E porque é em Portugal que se realiza a prova que muitos consideram a mais importante?.Para responder a essa questão é preciso falar de um engenheiro aeronáutico com uma paixão pelo surf, Tom Morey. Foi ele que inventou uma prancha de espuma de polietileno que, durante anos, foi conhecida pela marca por si criada: Morey Boogie. Hoje chama-se Bodyboard e Morey, falido e cego, parece ser, aos 83 anos, uma metáfora viva da história do desporto..Se Morey é o pai do bodyboard, o havaiano Mike Stewart é o padrinho. Foi Stewart, o miúdo que varria a oficina de Morey, o primeiro campeão do desporto, somando nove títulos mundiais numa altura em que o troféu era só disputado no Havai..A bem-sucedida ligação a Portugal surgiu em 1994, em Viana do Castelo, quando jovens surfistas ambiciosos trouxeram a primeira etapa do mundial fora do Havai para o Minho. Um desses jovens era Guilherme Bastos que se tornaria, anos mais tarde (entre 2002 e 2013), presidente da Federação Portuguesa de Surf (FPS). Hoje com 43 anos, narra esse capítulo: "No ano anterior o Surf Clube de Viana tinha organizado com sucesso uma etapa do mundial de surf. Ora, o bodyboard estava em crescimento, pelo que decidimos apostar num mundial. Custou-nos qualquer coisa como dez mil contos [50 mil euros na moeda atual], uma verdadeira fortuna, paga pelo município.".Para os livros ficou a vitória do brasileiro Guilherme Tâmega, que ameaçava o domínio então incontestado de Mike Stewart. "Talvez por isso, para nossa surpresa, informaram-nos que a prova não tinha contado para o mundial, que era de 'demonstração'", recorda Guilherme Bastos..Assim, em 1995, Viana voltou à carga e organizou novamente o mundial. O precedente, entretanto, estava aberto e "outras provas surgiram por todo o mundo, como cogumelos", afirma o ex-presidente da FPS..O bodyboard vivia um momento atípico: se por um lado conhecia uma expansão internacional, por outro recuperava da sua primeira grande crise. Morey vendeu a marca e a patente à multinacional de brinquedos Wham-O, que por sua vez foi comprada pela Kransco e depois pela Mattel. Empresas que tiraram o bodyboard das lojas de surf e o colocaram nos hipermercados. Um "pecado capital" que justifica, em parte, a decisão das grandes marcas de surf retirarem o apoio ao bodyboard. "Decidiram, por razões que ainda hoje não percebo bem, dissociar-se do bodyboard, num movimento quase concertado", alega Mike Stewart..Um movimento que o australiano Terry McKenna, diretor de operações da APB, a Associação Profissional de Bodyboarders, não tem dúvidas em considerar como uma "conspiração": "Acredito que os responsáveis das três maiores marcas de surf, todas australianas, se sentaram a uma mesa e decidiram o assassinato do bodyboard.".O Sintra Portugal Pro surgiu nesse contexto, em 1995, e atingiu o auge simbólico (e não só) em 2002, com a presença do então Presidente da República Jorge Sampaio e com honras de transmissão direta na RTP. "Sintra foi o pilar de sustentação do circuito mundial durante muitos anos. Numa altura em que as vedetas internacionais perderam os seus patrocínios, era aqui que vinham buscar o prize money que lhes permitia correr o circuito", sublinha Terry McKenna..Em 2018, o cenário é diferente: o Sintra Pro contava com cerca de 300 atletas, hoje o número é de menos de metade. Existem mais duas provas em Portugal mas a derradeira etapa, nas Canárias, foi cancelada. Há cerca de cinco anos, a IBA, organização que tomava conta do circuito mundial, implodiu depois de três anos de grande sucesso, alimentada por um grupo de capital de risco que investiu cerca de três milhões de dólares naquele que chamavam "o gigante adormecido dos desportos de ação"..Assim, vive-se em Sintra um clima de recuperação. Mike Stewart, 55 anos, empresário e ainda competidor, acredita: "Comercialmente, noto que vendemos mais pranchas no ano passado. É um bom indicador. O bodyboard vai voltar a prosperar.".Iain Campbell, o sul-africano de 27 anos que defende o título mundial, dá outra razão: "Talvez seja uma questão de fé cega, mas nunca foi o dinheiro a impulsionar quem corre o circuito. Talvez haja uma mão-cheia de bodyboarders que conseguem viver do desporto mas é uma questão de paixão. Sempre foi assim e, infelizmente, penso que sempre será."