Bloco de Esquerda. Dois governos abaixo, dois grandes tropeções eleitorais
É o maior desaire eleitoral dos quase 23 anos do Bloco de Esquerda. Com uma trajetória sobretudo de crescimento, ao longo das últimas duas décadas, os bloquistas tinham nas legislativas de 2011 o seu grande percalço eleitoral. Até agora. A derrapagem do último domingo custou ao partido 252 mil votos (caiu para os 240 mil), um decréscimo de 9,7% para 4,5% que custou aos bloquistas 14 lugares na Assembleia da República - praticamente três quartos de uma bancada de 19 deputados, que cai agora para os cinco assentos parlamentares. Perdeu três deputados em Lisboa, dois no Porto, Aveiro e Braga, um em F aro, Santarém, Setúbal, Coimbra e Leiria - em vários destes círculos é evidente a transferência de voto direta para os socialistas. De terceiro grupo parlamentar, o BE passa agora a sexto.
O que têm em comum as duas grandes derrotas eleitorais do BE (na verdade, as duas únicas, dado que em 2019 o partido baixa na votação, mas mantém o número de deputados)? Ambas foram antecedidas da queda de um governo socialista, com o contributo direto dos bloquistas. Se agora foi o chumbo do Orçamento do Estado para 2022 (OE), há dez anos foi o chumbo do PEC IV.
Para Paula do Espírito Santo, investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, do histórico eleitoral do BE resulta claro que o partido tem um eleitorado fiel e constante na ordem dos 5% , que mantém o voto (com uma pequena oscilação) quer em 2011, quer em 2022. O restante, que chegou a dar mais de 10% ao partido nas legislativas de 2015, é "um eleitorado flutuante dentro do espetro da esquerda". "É um eleitorado volátil, já o tinha sido anteriormente", diz Paula do Espírito Santo, considerando que era "bastante previsível que pudesse acontecer uma situação semelhante à de 2011". Considerando este antecedente, o BE "arriscou muitíssimo" nesta estratégia política de chumbo do OE. E perdeu. Para a investigadora, o Bloco nunca conseguiu esclarecer de forma clara as razões para a não viabilização do OE, questão que se transformou "numa das principais armas de arremesso" de António Costa. O facto de se tratar de um Orçamento do Estado, com "consequências imediatas na vida das pessoa e medidas que poderiam dar algum benefício imediato e não foram aprovadas", enquanto o BE punha em cima da mesa questões laborais - de leitura menos clara e "sem ligação ao orçamento" - tornou o discurso do PS muito mais eficaz.
A investigadora aponta ainda uma "mensagem pouco clara do partido" e "alguma estagnação da mensagem, muito centrada em argumentos do que não se resolveu" como fatores que contribuíram para o "esvaziamento" do BE. Sem grande surpresa, olhando para trás - " A história repete-se".
A direção do BE já disse que o chumbo do OE foi uma decisão política difícil, admitindo que comportaria alguma perda eleitoral. Não à escala que acabou por se verificar e que é atribuída ao voto útil e à bipolarização extremada pelas sondagens. Ainda assim, os bloquistas não renegam o chumbo do orçamento, antes pelo contrário. Os principais dirigentes do BE têm-se remetido ao silêncio nos últimos dias, mas ontem, numa entrevista à jornalista Ana Sá Lopes, no Público, Jorge Costa, ex-deputado e dirigente nacional do partido, voltou a acusar António Costa de "intransigência negocial" e "chantagem política sobre a esquerda" - "Não nos podemos pôr na posição de transformar a esquerda num satélite. O que seria da esquerda a longo prazo se se remetesse à condição de roda suplente do carro do PS?".
As relações com o PS são há muito uma questão divisiva no BE - na verdade desde a fundação, quando PSR, UDP e Política XXI se juntaram no novo partido. Desde então o panorama mudou substancialmente, com a progressiva dissolução das três forças partidárias fundadoras em associações políticas, e a criação de uma corrente interna dominante, congregadora dos principais rostos das tendências fundadoras, com exceção da UDP. Mas essa é uma clivagem que ainda hoje se mantém.
Pedro Soares, antigo deputado do partido e o principal rosto da plataforma Convergência, crítica da atual direção, aponta precisamente a proximidade ao PS como uma das razões de fundo para o desaire do Bloco, que deixou "colar-se a imagem de que era um sustentáculo, um pilar do Governo". O que resultou num cenário de "contradição" quando o BE vota contra o OE e surge perante a opinião pública como o partido que fez cair o Governo. "Em vez de se ter afirmado claramente como oposição a partir de 2019, criou esta imagem contraditória. E depois, no dia seguinte a chumbar o orçamento, estava a admitir novas alianças com o PS. Isto é difícil de explicar, são sinais contraditórios", aponta.
Quanto a 2011, o antigo deputado rejeita uma comparação linear. Prefere olhar por outro prisma, mais precisamente para as eleições seguintes, o melhor resultado de sempre dos bloquistas. Prova de que o eleitorado se afasta, mas "pode voltar". Para isso, defende, é preciso que o partido "mude de rumo". E depressa: ou seja, com a antecipação da convenção, prevista para o próximo ano, já para 2022. Para discutir "tudo", inclusive a direção do partido.
O Bloco candidatou-se pela primeira vez às legislativas em 1999, conseguindo eleger dois dos fundadores - Francisco Louçã e Luís Fazenda - como deputados. Três anos depois o partido elege três deputados (a bancada mais próxima daquela que o partido tem agora). Três anos depois, na primeira maioria de José Sócrates, salta para os oito deputados e, quatro anos depois, dobra a fasquia para os 16.
Nas eleições seguintes tudo foi diferente. Em março de 2011 o BE avança com uma moção de censura ao governo, chumbada pelo voto contra dos socialistas e a abstenção da direita. Mas se a moção falha o derrube do governo, o desfecho não tardaria. Três semanas depois o chumbo do PEC IV - com os votos de toda a oposição, BE inclusive - determina a queda do governo. Nas legislativas que se seguem, os bloquistas conhecem o seu primeiro grande desaire eleitoral, vendo a bancada reduzida a metade.
Com quatro anos de troika, em 2015 os bloquistas saltam para o cenário inverso, com a melhor votação de sempre - a única acima dos dois dígitos - que dá ao partido a maior bancada parlamentar de sempre e, pela primeira vez, a condição de terceira força política. Seguiram-se os quatro anos da geringonça, uma solução governativa totalmente inédita na política portuguesa, que deixou o partido de Catarina Martins mais ou menos onde estava: em 2019 o partido cai ligeiramente em percentagem e votos, mantendo a bancada de 19 deputados que agora, pouco mais de dois anos depois, fica reduzida a praticamente um quarto.