Para os fãs de Edgar Pierre Jacobs o facto de as aventuras de Blake e Mortimer não terem morrido com o autor é uma bênção, daí que os vários volumes que têm sido publicados nos últimos anos não serem polémicos. Tem havido de tudo, mas principalmente a recuperação dos grandes personagens do universo de Blake e Mortimer, como Olrik por exemplo, ou cenários como os de O Segredo do Espadão ou de A Marca Amarela..Se todas estas experiências convergem no filão Blake e Mortimer, o que não se estava à espera era de uma divergência tão grande como a do álbum que acaba de ser publicado em língua portuguesa: O Último Faraó. E a maior surpresa está no nome principal de quem assina este volume: François Schuiten. Que varre tudo o que já fizeram os sucessores que continuam as aventuras da dupla e, quer se queira quer não, não só surpreende como pode assustar os leitores..Começa por ter direito a 84 páginas. Continua com a maldade de envelhecer o duo de uma forma assustadora, sendo que se observa Mortimer em apuros devido à velhice e a confessar que já não é capaz de toda a atividade física que o movia nos álbuns originais ou de continuação. Esse é o primeiro choque logo à primeira prancha, porque a seguir dá-se a invasão de Schuiten de um dos universos mais sagrados de Jacobs, o da Grande Pirâmide. A partir dessa segunda página há que aceitar o facto de que existe um novo Mortimer - e um Blake por acréscimo - e que se está perante a melhor surpresa do ano no que respeita à banda desenhada..Os responsáveis editoriais deste projeto garantem que O Último Faraó não pretende ser nem uma homenagem nem um regresso nostálgico ao passado, mas ao conjugar a ação entre o Egito e o Palácio de Justiça de Bruxelas Schuiten provoca várias e inquietantes dúvidas no leitor, afinal esse local da capital belga foi uma antiga morada de Jacobs em jovem, que deixara dito que pretendia fazer um álbum aí situado. Mais, que o arquiteto do Palácio de Justiça, Joseph Poelaert, sonhava que em vez da cúpula com que o edifício ficou houvesse antes uma pirâmide invertida. Tal não aconteceu na realidade, mas acabará por se tornar real neste álbum onde Bruxelas e o Cairo estão ligados por um fio condutor enigmático - às vezes levada ao limite - na história e bem ao estilo de Jacobs..A entrega de um projeto tão excecional a Schuiten seria coisa impensável, mas fez parte de uma "conspiração" positiva. De um lado, um artista que já confessara a admiração por E.P. Jacobs e que garante que "desenhar é a minha vida", tendo revelado em 2015 que o seu próximo projeto seria "um novo álbum de Blake e Mortimer", justificando que o universo de Jacobs o marcara bastante: "Mais do que uma continuação, é uma forma de o homenagear ao recuperar o seu universo sem defraudar o registo da sua obra." A partir desse momento, Schuiten pouco ou nada falou sobre um superálbum destinado a espantar quem o lesse. Rodeou-se de três colaboradores, Thomas Gunzig, Jaco Van Dormael e Laurent Durieux, os dois primeiros para ajudar no argumento e o terceiro responsável pelo colorir..Rumores em 2015.Após os primeiros rumores sobre Schuiten tomar de assalto um dos mais importantes personagens da banda desenhada franco-belga - surgiram em final de 2015 -, previa-se que o álbum fosse lançado dois anos depois, o que só aconteceu em 2019. Só em 2018 é que se confirmou esse boato quando a editora Dargaud postou uma fotografia de Schuiten e Gunzig a trabalhar em Blake e Mortimer. Meses mais tarde, apareceu outra foto, com Schuiten a entregar o álbum, e foi feito o anúncio da data de publicação. Entretanto, Schuiten garante que não vai haver continuação nesse tributo a Jacobs..Tal como garantira que não pretendia imitar o estilo de Jacobs, dizendo numa das suas poucas declarações que se confrontara com uma dúvida principal: "O que é a fidelidade a um autor? Alinhar no seu estilo ou homenageá-lo através do meu? O que fiz foi o que mais me agradava, respeitei o seu espírito sem copiar o estilo.".Diga-se que Schuiten já se envolvera no álbum Blake e Mortimer, A Maldição dos Trinta Denários, e tinha-lhe sido pedido para desenhar a parte dois de As 3 Fórmulas do Professor Sato. Aliás, a obra de Jacobs esteve sempre no imaginário de Schuiten, como refere numa nota sua: "Porque estão as histórias de E.P. Jacobs tão dentro de nós? Se voltamos a elas várias vezes devido à forte impressão que nos deixaram depois da primeira leitura, como se tentássemos descobrir o segredo desse fascínio."Quanto ao cenário escolhido, François Schuiten adiantou: "O Palácio de Justiça de Bruxelas, tal como a grande pirâmide de Gizé, ainda tem segredos para revelar. Pode ser que este álbum lance uma luz sobre eles, senão permanecerá o mistério por mais algum tempo.".Schuiten, tal como E.P. Jacobs, é natural de Bruxelas e em ambos o Palácio de Justiça foi tema de interesse. Se nas notas de Jacobs este referia o seu interesse no edifício, também a curiosidade de Schuiten sobre ele era grande. O argumento de O Último Faraó recupera os debates sobre a escolha do projeto que aconteceram no final do século XIX, momento em que o arquiteto Polaert considerou que nenhum estava à altura senão o seu, que envolvia além de uma gigantesca construção, um orçamento elevado, mas em 1866 a primeira pedra foi lançada e 150 anos depois Schuiten dava início a O Último Faraó..Tal como as antigas expedições ao Egito levavam artistas para desenhar o que se via, também Schuiten se dedicou ao estudo das pirâmides e desenhou-as vezes sem fim, ligando os dois cenários fundamentais desta aventura..Um conselho, antes de entrar nesta aventura de Schuiten é bom reler a de E.P. Jacobs. E, tal como o autor, explorar as ligações que poderão existir entre O Mistério da Grande Pirâmide e O Último Faraó..O Último Faraó.François Schuiten.Edições ASA