Billie Holiday às três pancadas

<em>Estados Unidos vs Billie Holiday</em> é um biopic com muita pele e sem coração. Só Andra Day garante o mínimo de substância à lenda do jazz.
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Começa por ser uma canção, Strange Fruit, que motiva o olhar sobre a vida Billie Holiday. A sua recusa em deixar de cantar este poema-protesto de Abel Meeropol, palavras que ao condenarem o linchamento dos negros avivavam a chama do movimento dos direitos civis de cada vez que se cruzavam com a interpretação de Holiday, determinou a sua perseguição por parte das autoridades norte-americanas. Em 1947 conseguiram metê-la atrás das grades, com sentença de um ano, não pela canção - motivo que não poderia ser contemplado pela lei - mas por posse de droga, uma "desculpa" mesmo a jeito. A narrativa de Estados Unidos vs Billie Holiday, de Lee Daniels (Precious), aponta então para esse papel de resistência da venerada cantora afro-americana, mas rapidamente se desinteressa por qualquer matéria de convicções ou verdade íntima, escolhendo explorar o cliché da estrela que se injeta com heroína.

É certo que qualquer retrato biográfico de Lady Day não pode ignorar as drogas e os abusos, quer emocionais quer da indústria, nem tão-pouco os vestígios da infância pesada. Em todo o caso, o filme de Daniels faz deste cocktail uma licença para conceber a pornografia da miséria dentro do luxo do camarim, usando ainda a especulação do romance entre Holiday e um agente negro do FBI (responsável pela sua detenção) como veículo de uma história desleixada, sem foco ou coração, e com uma estrutura incerta, como se quisesse piscar o olho a todas as "curiosidades" que fazem parte da lenda. Onde fica Strange Fruit no desfile de vício e degradação humana? Era só um pretexto para dar envergadura ao título Estados Unidos vs Billie Holiday. Um equívoco.

No papel principal, Andra Day, que venceu um Globo de Ouro, procura fazer algum sentido no meio disto tudo, desde logo resgatando um pouco da alma da artista em palco, mas o filme não a deixa ser memorável. Fica o rascunho desta mulher mítica, as magnólias brancas no cabelo e seringas na pele. Um serviço muitíssimo mais digno presta o documentário Billie, de James Erskine, que estreia também esta semana

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