Bielorrússia. Meninos em zinco
A conexão ferroviária Paris-Moscovo passa pela Bielorrússia. Foi a única vez que senti o solo desta república constituinte da antiga União Soviética. Durante a viagem, fui obsequiado com um prato de carne de porco e vegetais, acompanhado de pão de centeio. Disseram-me que era típico da Bielorrússia e que simbolicamente o previam na ementa da viagem. Pela janela do comboio, vi florestas decíduas e coníferas, assim como campos agrícolas. A agricultura é uma das principais atividades económicas do país e responsável pela produção de trigo, milho, batata, beterraba, cevada e centeio. Já tinham passado alguns anos sobre o acidente nuclear da fábrica de Chernobyl. Os ventos levaram quase 70% de toda a poeira radioativa para o território bielorrusso, o que resultou na contaminação do ambiente e na morte de pessoas a curto e a médio prazo. Politicamente, houve uma tentativa de aproximação com a Europa Ocidental, com o intuito de melhorar a condição económica da antiga república socialista, com Stanislav Chouchkievich, o primeiro chefe de Estado, na era pós-soviética. Porém, a forte dependência em relação à Rússia, principalmente em matérias-primas, exerceu um papel antagónico nesta tentativa. Em 1994, Chouchkievich foi substituído por Aleksander Lukashenko, ex-comandante de um "solvkoze", que é uma quinta coletiva estatal da antiga União Soviética. Após a vitória, Lukashenko trabalhou para ampliar a reaproximação com a Rússia, o que levou à assinatura de um tratado de amizade e de cooperação entre os dois países. O novo líder percebia que fora da Rússia havia pouca salvação para o seu país, dependente de 90% da energia consumida do vizinho, além do endividamento externo, cujo principal credor é precisamente a Rússia. Num referendo no ano seguinte, a população votou pela adoção do idioma russo como língua oficial, por uma bandeira e uma maior integração económica com o vizinho. Esta era a realidade económica deste país que se atravessava aos meus pés. Em Portugal, procurei literatura bielorrussa para me acompanhar na viagem de comboio. Encontrei referências interessantes a Svetlana Alexandrovna Alexievich, uma jornalista de investigação, ensaísta e historiadora. Ela recebeu o Prémio Nobel da Literatura, em 2015, pelos seus escritos sobre o sofrimento e a coragem no nosso tempo. Depois de ter editado, em 1989, o livro "Boys in Zinc", sobre os soldados mortos que haviam retornado em caixões de zinco da Guerra Soviética-Afegã (1979 a 1985), foi acusada de difamação e profanação da honra dos soldados e julgada várias vezes, entre 1992 e 1996, com perseguição política pelo Governo de Lukashenko. Deixou a Bielorrússia, em 2000, refugiando-se em Paris, Gotemburgo e Berlim, regressando, em 2011, a Minsk. Em "Boys in Zinc", Svetlana empenha-se em reduzir a história ao ser humano. Ela traz relatos brutais e monólogos que são reproduções honestas das histórias orais das experiências de guerra. Histórias que não passam, sobre um país que, porém, apenas conheci de passagem.
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.