Bertolucci pensou recusar o Óscar... mas não o fez
Apesar de falecido há cerca de seis meses, Bernardo Bertolucci foi uma das figuras em evidência na zona de Clássicos do 72º Festival de Cannes. Esta é, aliás, uma secção que tem crescido imenso nos últimos anos, sobretudo através de cópias restauradas de títulos mais ou menos lendários da história do cinema - desta vez, um dos principais acontecimentos foi a passagem da cópia digital de Easy Rider, de Dennis Hopper, filme de culto a comemorar meio século.
A par dos clássicos, passaram a surgir recentíssimos trabalhos documentais que, de uma maneira ou de outra, evocam, não apenas os filmes, mas também os seus criadores. Este ano, justamente, Bertolucci foi uma das personalidades em destaque através de Bernardo Bertolucci: No End Travelling, um trabalho de 56 minutos de duração (visando, certamente, uma difusão televisiva).
Trata-se de uma realização de Mario Sesti, realizador, crítico e jornalista cinematográfico italiano. Amigo próximo do autor, Sesti gravou com ele várias entrevistas para edições em DVD de alguns dos seus filmes. O documentário inclui alguns extratos dessas entrevistas, em particular sobre o contexto em que Bertolucci se afirmou como um dos novos talentos da produção italiana através de La Commare Seca (1962) e Antes da Revolução (1964). As atribulações da distribuição mundial de O Conformista (1970) ou o polémico impacto de O Último Tango em Paris (1972) são outros assuntos evocados.
O essencial do documentário, preenchendo mais de metade da sua duração, é uma entrevista inédita, registada em casa de Bertolucci, cerca de um ano antes da sua morte. Descobrimos, assim, uma coleção de memórias de alguém que, com metódica serenidade, fala do seu trabalho, cruzando rigor e ironia.
Bertolucci lembra, por exemplo, a sua altivez de jovem cineasta no momento em que Jean-Paul Sartre recusou o Prémio Nobel da Literatura (1964). Recorda mesmo ter dito que faria "exatamente o mesmo" se lhe atribuíssem um Óscar... Logo a seguir, acrescenta que a cerimónia dos Óscares de 1989, quando O Último Imperador arrebatou nove estatuetas douradas (incluindo melhor filme e melhor realização), foi das noites mais felizes da sua vida.
Um dos momentos especialmente tocantes referido no documentário de Sesti é o primeiro encontro público de Bertolucci e Marco Bellocchio (em 2003), outra grande referência da mesma geração do cinema italiano. Convém acrescentar que, a poucos meses de celebrar 80 anos, Bellocchio marcou presença na competição de Cannes com Il Traditore, retrato visceralmente trágico de Tommaso Buscetta, membro da Cosa Nostra que, nos anos 80, denunciou muitas figuras daquela organização criminosa. Ou como se prova que, na dinâmica do cinema europeu, importa nunca esquecer os italianos.