Do alto de um monte, com vista sobre o rio Tejo, Belver é Terra de Guidintesta, envolta num ar de magia e fé em honra das Santas Relíquias. Hoje, é dia de festa e a gente regressa à terra para um reencontro anual. Jovens e anciãos, paróquia e Clube Recreativo e Desportivo Belverense, unem-se para criar "uma celebração única no país", diz Carlos Evaristo, arqueólogo especialista em relíquias sagradas. O culto secular coloca o poder de Deus nas ruas de Belver. Resta saber se é possível desvendar o que são as Santas Relíquias da vila..Mil anos antes, talvez também em dia de festa, uma princesa clamou, na colina do castelo junto a uma oliveira que ainda lá está, "mas que belo ver", batizando assim este ponto das Terras de Guidintesta. Pelo menos é assim que diz a lenda, que em Belver é inseparável da história, num Alto Alentejo fronteiriço à Beira Baixa, lugar de fusão de costumes e tradições..Afirmando que "existe uma parte de factos históricos e outra de lenda associada às relíquias", o historiador belverense Carlos Grácio mantém um profundo "respeito pela originalidade e longevidade que as Santas Relíquias têm no imaginário e memória de Belver, de tal forma que ligam o religioso e profano numa celebração única"..O que são as Santas Relíquias "é o mistério". Carlos Grácio ouviu a sua mãe contar que "nos anos de 1950 o relicário foi aberto e lá dentro estava uma caixa com várias divisórias onde as relíquias estavam dispostas em saquinhos, entre elas um anel de prata do bispo S. Braz, em honra de quem foi erguida a Ermida de S. Braz, dentro dos muros do Castelo de Belver e onde, originalmente, estavam depositadas as relíquias". O que estaria nos saquinhos? E se as Santas Relíquias de Belver forem pedaços do poder de Deus na Terra?.Carlos Evaristo está na senda das relíquias portuguesas há décadas. Arqueólogo e historiador, integra um projeto da Fundação Histórico Cultural Oureana para catalogação destes artefactos em Portugal. Das Santas Relíquias de Belver conhece a "Lenda Dourada", como é denominado o folclore criado em torno de devoções.."O regresso das Santas Relíquias a Belver, depois de roubadas, navegando sozinhas Tejo acima é um conto que se repete em outras terras da Península Ibérica, como em Oviedo", explica. O mais provável é que "a devolução das relíquias, pilhadas no século XIX pelas tropas de Napoleão, tenha sido feita ao Vaticano que, depois, as fez chegar novamente a Belver, provavelmente de barco"..A primeira referência identificada por Carlos Evaristo sobre este misterioso conjunto de objetos é de 1555, data em que foram trazidas para Belver, pela primeira vez, por D. Luís, filho do rei D. Manuel I e, à época, Prior do Crato, sendo a este priorado que pertencia a Ordem dos Hospitalários" detentora das Terras de Guidintesta..O que eram as Santas Relíquias no século XVI, "não se consegue provar". Sobre o que estará guardado hoje no relicário, Carlos Evaristo apurou em arquivos oficiais que "guarda uma relíquia em prata de São Sebastião e ceras". As ceras em relicários são, habitualmente, Agnus Dei, "pedaços de discos ovais imbuídos de poder de Deus canalizado por uma bênção do seu representante na Terra: o Papa"..Com pedaços do poder de Deus a percorrer todos os anos as ruas de Belver, não é de espantar que a vila se mantenha a salvo de todos os males. "Facto é que em tempo de aflição as pessoas recorrem às Santas Relíquias e são atendidas", conta Martina de Jesus, presidente da Junta de Freguesia..A autarca não tem dúvidas de que "a história, folclore e etnografia de Belver representam o passado e são o futuro da terra", que encontrou grande desenvolvimento no turismo de natureza e turismo cultural. O Castelo de Belver, com uma exposição permanente, é exemplo do que será o futuro da terra, pois "em julho de 2021 já tinha registado mil visitantes, número bastante significativo para uma freguesia com território extenso, mas apenas cerca de 600 habitantes"..Martina de Jesus destaca com igual orgulho o Museu do Sabão, "único em Portugal e o quarto no mundo dedicado ao tema, retrata a produção artesanal de sabão mole que se fez na terra durante séculos". Não esquece ainda o Núcleo Museológico das Mantas e Tapeçarias e o Museu do Vinho e do Pão"..Se não for pela história, cultura e os empregos que ela pode criar, públicos e na hotelaria e restauração, Martina não tem dúvidas "será difícil fixar muitas pessoas em Belver, ou trazer de volta as que partiram". Favorável à regionalização, a autarca afirma, "o interior do país continuará em risco até que o país se descentralize de Lisboa e do Porto"..André Martins é prova da qualidade de vida que os jovens podem descobrir em vilas do interior. O lisboeta regressou à terra natal dos seus avós e pais, trabalha fora do concelho, em Ponte de Sor, mas o seu tempo livre é dedicado a Belver. Preside a Assembleia de Freguesia e o Clube Recreativo e Desportivo Belverense. Coletividade organizadora das Festas das Santas Relíquias, o clube contraria a tendência de envelhecimento do interior do país "com a média de idades dos associados a rondar os 27 anos"..Nas expectativas das Santas Relíquias de 2022, André Martins não tem meias palavras, acredita que "serão batidos os recordes". O programa agrada "dos 0 aos 99 anos", com música tradicional e popular, um espetáculo de dança, DJ"s, BTT Júnior e um torneio de matraquilhos. "Sem nunca descorar a componente religiosa que tem o seu ponto alto na tarde de domingo [21 de agosto], com a procissão em honra das Santas Relíquias", afirma André Martins..dnot@dn.pt