Belém. A cidade do pão onde todos ralham
Bayt Lahm em árabe ou Beit Lehem em hebraico são uma e a mesma coisa: a Casa do Pão. É o nome da cidade onde nasceu Jesus, como acreditam os cristãos, a Belém de David, nascido pastor e coroado rei e a terra da Palestina que hoje vive estrangulada por um muro de segurança imposto por Israel.
Belém é a cidade onde vive uma das comunidades cristãs mais antigas do mundo, lado a lado com árabes muçulmanos, todos sob o mesmo jugo de um vizinho que mantém mão pesada e uma desconfiança maior dos palestinianos.
Dez quilómetros a sul de Jerusalém, Belém é o centro de uma província onde há 18 colonatos israelitas ilegais, como descreve o governo palestiniano, incluindo áreas do município de Jerusalém que Israel expandiu, anexou e definiu como suas.
A cidade "está cercada" nos seus quatro pontos cardeais. Obrigados a passar pelos controlos israelitas, os visitantes da Palestina chegaram aos 2,3 milhões em 2016, os últimos dados disponibilizados pelas autoridades palestinianas, que se traduziram em 900 mil dormidas em hotéis no território.
A principal atração da cidade é a Basílica da Natividade, que diz a tradição foi construída no local onde nasceu Jesus, aproximadamente no ano 4 antes da era comum (ou antes de Cristo), por alturas da morte de Herodes Magno. Esse local seria uma gruta ou caverna, segundo relatos dos primeiros séculos desta era trazidos pelos escritos de Justino, o Mártir, e de Orígenes de Alexandria, o Cristão. O evangelista Lucas (Lc 2, 1-7) apenas refere uma manjedoura onde Maria deitou a criança, "por não haver lugar para eles na hospedaria", e os biblistas referem que a tradição da "gruta" é do século II.
Nascido Jesus ali ou não, a igreja que é hoje um grande complexo que inclui três mosteiros - das comunidades ortodoxa oriental, arménia e franciscanos - é também ela fonte de discórdia entre cristãos. É uma marca daquela terra.
Ao local da gruta da natividade, uma capela na cave da basílica, abaixo do altar-mor da igreja, chega-se depois de passar pela Porta da Humildade, que dá acesso à basílica. O nome remete para o facto de todos os peregrinos serem obrigados a curvar-se para entrar - a porta só tem 1,25 metros de altura e por ela só entra uma pessoa de cada vez. O motivo é no entanto mais prosaico: a porta original foi alterada pelos monges franciscanos, já no século XVI, para impedir que os cavaleiros otomanos entrassem pelo templo, numa época em que ameaçavam invadir a região.
Estes episódios destapam a realidade de uma Belém que é também sinónimo de conflito, uma casa onde falta o pão da concórdia, em que todos ralham e se perdem na razão.
Nos dias de hoje, Belém é uma das cidades com mais desemprego na Cisjordânia. Em 1948, os cristãos na cidade seriam 90% dos habitantes, hoje são 30%, cansados de uma vida dura sem perspetivas de futuro. Em 2015, no seu postal de Natal, o artista Banksy transportou Maria grávida de Jesus e José num burro até ao muro de Belém, sem que os dois pudessem passar.
É o reconhecimento de um episódio central como este na história do mundo que leva a que o nome de Belém se tenha replicado nos diferentes continentes: há pelo menos 28 Bethlehem, só nos Estados Unidos da América; dez outras cidades identificadas em locais tão díspares como Irlanda, Jamaica, Namíbia, Holanda, Nova Zelândia, Singapura, ilhas Salomão, África do Sul, Suíça ou País de Gales. Se vertermos para o espanhol Belén, encontramos outras 12 localidades ou municípios, nas Honduras, Colômbia, Paraguai, Peru e Argentina. E em português há Belém do Pará, na boca do Amazonas, e outras sete localidades brasileiras ou a freguesia de Lisboa, nome de palácio e pastéis, que já foi concelho, e o bairro da Póvoa de Varzim também conhecido por Giesteira.
Nas histórias de cada um destes povoados e sítios, certamente se encontrará algures na sua fundação uma referência à bíblica Belém de Judá, que já foi terra de judeus e samaritanos, otomanos e cruzados, ingleses e palestinianos.
Na tradição muçulmana, Jesus - que é também um profeta do Islão - disse, numa das suas "máximas": "A semente cresce na planície, mas não entre as rochas. Assim também a sabedoria floresce no coração do humilde, mas não no coração do orgulhoso. Não vedes que o homem que se pavoneia alteando a cabeça embaterá no teto, enquanto aquele que baixa a cabeça a abriga e protege?" O professor Tarif Khalidi, historiador palestiniano, nascido em Jerusalém, identifica a parábola bíblica do semeador (Mateus 13, 4-9) como uma origem possível para esta máxima muçulmana de Jesus. Nos dias de hoje, a semente teima em cair nas rochas.
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Breve bibliografia: E. P. Sanders, A Verdadeira História de Jesus, Editorial Notícias, 2004; Tarif Khalidi, Jesus Muçulmano, Editorial Tágide, 2002; Nova Bíblia dos Capuchinhos, Difusora Bíblica, 1998.