Tem um tom calmo, com a segurança de quem passou 25 anos à frente de uma sala de aulas. Em 2019 o palco mudou, os ouvintes também, a biologia deu lugar à política. Deputada à Assembleia da República, Beatriz Gomes Dias é agora a candidata do Bloco de Esquerda à Câmara de Lisboa. É a primeira mulher negra a protagonizar uma candidatura à maior autarquia do país, mas se o combate ao racismo é um tema que a acompanha desde cedo e que coloca no centro da sua ação política, rejeita reducionismos. Quer uma cidade com lugar para todos, a começar pela habitação, admite novo acordo no executivo municipal, mas só no pós-eleições - o BE vai sozinho às autárquicas, depois se verá o que ditam os resultados..Beatriz Gomes Dias nasceu em Dakar, no Senegal, numa família de origem guineense. Chegou a Lisboa no final de 1975, aos quatro anos, e vem daí uma das suas primeiras memórias: o frio de dezembro à chegada. A família instalou-se nas proximidades da Praça de Espanha e foi aí que cresceu, entre os passeios nos jardins da Gulbenkian e as aulas na Marquesa da Alorna, depois no D. Pedro V..Da infância à juventude, cresceu na constatação de uma diferença. "Fui crescendo tendo consciência do facto de pertencer a um grupo minoritário, fui tendo noção da discriminação interpessoal, os comentários, os preconceitos, é algo que está presente no quotidiano de qualquer pessoa racializada, desde criança. Era algo que me causava perplexidade, havia uma descoincidência entre o que experienciava na família e a realidade fora de casa, na rua, a forma como as pessoas interagiam comigo. E isso sempre me causou alguma interrogação, alguma inquietação". A essa experiência quotidiana somava-se um lugar de ausência no espaço público. "Quando era criança e jovem os modelos de pessoas que combatiam a discriminação eram mais internacionais, referências como o Martin Luther King, o Nelson Mandela, a Angela Davis. Esses modelos não existiam no contexto nacional", conta ao DN..Esta vivência atravessa todo o seu percurso de vida. No final do secundário, inscreve-se no SOS Racismo e essa inquietação vai tomando a forma de ativismo. A par desse trajeto, participa no movimento de contestação estudantil à PGA (a prova de acesso à faculdade), aproxima-se do PSR (um dos partidos que viria a dar origem ao Bloco de Esquerda), duas dimensões que vão enformando a sua participação política. Entretanto parte para Coimbra, para estudar biologia: "Gostava muito de ciências, tinha tido professoras de biologia extraordinárias, que me influenciaram muito, era uma área de conhecimento que abria grandes possibilidades". Pelo caminho, envolve-se na contestação às propinas..Depois de alguns anos mais centrados na carreira profissional, em 2005 Beatriz opta por uma participação política mais ativa: "Senti que era importante intervir politicamente, numa estrutura mais organizada". Participa na campanha de José Sá Fernandes, então candidato do Bloco de Esquerda à câmara de Lisboa, envolve-se no referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Acaba por tornar-se militante do Bloco de Esquerda em 2007..À procura de uma cidade mais próxima, da Lisboa onde a vida se faz no bairro, muda-se para perto do centro histórico, para Arroios, onde virá a assumir um lugar na assembleia de freguesia. Divide-se entre o ensino básico e secundário, como professora de biologia, passa pela D. Luísa de Gusmão, pelo liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, pelo agrupamento Francisco de Arruda, pela D.Filipa de Lencastre. Duas décadas e meio a dar aulas até que, em 2019, assume em exclusividade o cargo de deputada na Assembleia da República..Do Miradouro da Senhora do Monte, perto da Graça, que a candidata do BE elege como um dos seus espaços preferidos na capital, Lisboa espraia-se a quase 360 graus ao olhar, da zona oriental ao limite das Avenidas Novas. Que cidade defende Beatriz Gomes Dias? "Uma cidade que corrija as desigualdades avassaladoras, Lisboa é das cidades portuguesas com maiores níveis de desigualdade" e agora num "contexto de crise económica e social" provocada pela pandemia..E como é que isso se faz? À cabeça, com "habitação para todos, com preços que as pessoas possam pagar", necessariamente com "mais habitação pública" que permita recuperar habitantes para Lisboa, uma tarefa que diz não poder ser entregue aos privados. Fernando Medina, presidente da autarquia, sustenta que os cofres da Câmara não dão para tanto, o BE responde que é uma escolha política - "o pilar privado, no qual o presidente da câmara insiste, ainda não avançou. Para além de demorar muito mais tempo, não está a avançar, os resultados têm sido mais do que insuficientes". Outra frente dos bloquistas é a resposta à emergência climática: "É preciso criar condições para que as pessoas deixem os carros em casa e isso tem de ser alcançado através da melhoria dos transportes públicos, que devem ser gratuitos"..Depois de um mandato em que o BE fez um acordo com o PS no executivo camarário, a candidata autárquica deixa a porta aberta a que este cenário se volte a repetir. "Houve várias dimensões, nestes quatro anos, que foram influenciadas pelo Bloco de Esquerda - os passes, os manuais escolares gratuitos. Queremos aprofundar esse combate às desigualdades, à crise da habitação, uma resposta mais robusta à emergência climática. É importante que o nosso projeto eleitoral seja avaliado e que as pessoas definam as forças que vamos ter. Mediante esse resultado, sim, iremos conversar. Estamos disponíveis para encontrar soluções que melhorem a vida das pessoas". Fora da equação está um acordo pré-eleitoral, mesmo que a frente PSD/CDS ameace a esquerda - "Vamos a votos"..Beatriz Gomes Dias é candidata a Lisboa quatro anos depois de Ricardo Robles, que em 2017 foi eleito para a vereação lisboeta, mas acabaria por se afastar devido à polémica com um alojamento local em Alfama. Uma herança pesada? O discurso está oleado: "O mandato do BE no executivo é um mandato do qual nos orgulhamos. Há conquistas que não teriam existido se o PS tivesse maioria. O Ricardo Robles teve uma intervenção que assumiu e deixou o seu cargo, o Bloco continuou a cumprir o projeto que tinha apresentado a eleições"..Aos 50 anos, a "rapariga muito tímida" de outros tempos, que "queria passar despercebida", como em tempos contava ao DN, ganhou a sua própria voz no espaço público, o "lugar de fala", como referia então. Pode ela própria ser o exemplo que não encontrava em criança? "Se puder dotar de modelos as pessoas que me ouvem, dar-lhes uma chave de leitura, isso é inspirador.".susete.francisco@dn.pt