Beatriz e 22 refugiados a caminho de Lisboa. "Trazem pouca coisa, mas força para recomeçar".
"O que me impressionou mais foram as pessoas. Trouxeram o que puderam, poucas coisas, mas estão com uma força e uma vontade enorme para recomeçar. Querem partir para um sítio seguro e reagem com normalidade. As crianças estão incrivelmente calmas, brincam com o que têm. Os pais tentam entretê-las. E, no meio de tanta confusão, todos reagem com o máximo de normalidade para voltarem ao máximo à normalidade, mas preocupados com o que lhes vai acontecer".
O relato é de Beatriz Nobre, 25 anos, enfermeira de profissão, há quatro anos no serviço de cirurgia geral do Hospital de Santa Maria, quando ainda está em Varsóvia, e poucas horas antes de regressar a Portugal, na caravana humanitária que integrou com o objetivo de poder ajudar quem "estava a passar por momentos terríveis" e queria fugir à guerra na Ucrânia, devido à invasão das tropas russas, no dia 3 de março.
Beatriz fala com o DN via Whatsapp. É manhã de sábado em Lisboa, já quase hora de almoço na Polónia. A caravana humanitária a que se juntou ultima o que é necessário para partir até Lubin, outra cidade daquele país, para ir buscar mais dez refugiados e iniciar o regresso a Portugal.
Ao todo, são 22 os refugiados, 14 adultos e 8 crianças, que estão a regressar com a equipa de 15 voluntários que integrou esta missão, cinco enfermeiras, Beatriz e mais quatro colegas do Hospital São Bernardo, de Setúbal, e dez outros companheiros associados a outras entidades. Mas para que esta missão esteja a ser possível "há muitas mais pessoas por detrás a apoiar-nos com tudo o que é necessário, quer a nível de gestão de pessoas, documentos, rotas e com muitos outros imprevistos", explica.
A partida da Polónia, acabou por acontecer às 19.00 de sábado. Para lá, levaram 48 horas de viagem, só com pequenas paragens para descansar, para cá poderão levar mais, "Trazemos mais pessoas, algumas crianças, temos de nos preocupar com o bem estar delas", afirma, mas, assume, "também temos de descansar ou dormir um pouco, quando chegámos a Varsóvia estávamos todos exaustos".
Às 08.30 de domingo, Beatriz transmite-nos via mensagem por Whatsapp que já estavam de regresso e a atravessar a Alemanha com o objetivo de chegar a Paris para fazerem nova paragem. Naquele momento, o sentimento era, mais uma vez, de alívio. "Temos todos os nossos refugiados, agora é tempo de os conhecermos melhor e de os deixarmos partilhar as suas histórias", escreveu.
Mas só conseguirá descansar e com o sentimento de missão cumprida, "quando chegarmos a Portugal e eles estiverem todos instalados e confortáveis". Se tudo correr bem, a chegada está prevista para segunda-feira, ainda sem hora marcada.
No entanto, e quando fala connosco, Beatriz reconhece que metade da missão está cumprida. "Havia tantas coisas que poderiam correr mal e que poderiam fazer com que não conseguíssemos alcançar o nosso objetivo, que assim que passámos a fronteira e chegámos à Polónia nos sentimos aliviadas e felizes". Um alívio que aumentou quando chegaram ao local de encontro marcado em Varsóvia.
Beatriz confessa nem saber bem como surgiu a ideia desta caravana humanitária. "Soube através de uma amiga, que é enfermeira no Hospital São Bernardo, que estava a ser preparada e perguntei se me poderia juntar. Queria ser útil, queria fazer algo para ajudar estas pessoas", justifica, acrescentando que esta perspetiva também foi a que levou escolher enfermagem.
Do sim ao participar na missão até à partida, foi pouco tempo. "A caravana estava dividida em mini grupos e cada um teve de se organizar para arranjar transporte, dinheiro, alimentos, etc, para conseguirmos fazer a viagem", explica.
Ao todo, partiram 20 carrinhas de Lisboa, no dia 2 de março, pela manhã, aquela em que seguia teve um problema e só arrancou à tarde, mas quando todas chegaram a Bordéus, em França, dividiram-se. Três rumaram à Polónia e as restantes à Roménia.
Beatriz está habituada ao voluntariado, "sempre fiz", afirma. Por isso, juntou-se de imediato à missão que já tinha mais pessoas, contando: "Já tinha estes dias de folga, mas assim que falei com a minha enfermeira chefe de que ia participar na missão ela e o hospital deram-me todo o apoio, conseguiram até que tivesse mais uns dias de folga para que fizesse a viagem mais descansada".
Quando lhe perguntamos o que sentiu assim que chegou a Varsóvia e o que mais a impressionou, ri-se, admitindo com toda a sinceridade: "Olhe, o que senti? Nem sei. Vou ter de pensar nisso quando chegar a casa e tudo isto tiver passado", afirma. Quanto ao que mais a impressionou, mais uma vez, "foram as pessoas".
Assim que passaram a fronteira da Polónia, na sexta-feira à tarde, perceberam que o que iriam observar a partir dali já seria muito diferente do que até àquele momento. "Já havia camiões militares, tanques e muitos militares. O ambiente já era de maior tensão", conta, mas também de "desespero". "As pessoas perceberam que era uma caravana humanitária e começaram a vir ter connosco para pedir ajuda. Alguns eram ucranianos, outros polacos a tentar ajudar ucranianos", continua.
A comunicação não tem sido fácil. Muitos falam inglês outros não, "têm sido ucranianos que já viveram em Portugal e que conhecem a nossa a língua que nos têm ajudado a comunicar com as pessoas".
No local marcado em Varsóvia, tinham já alguns dos refugiados que iam trazer. Outros tentaram ajuda, dizendo que e tinham marcação para regressar, mas, depois de feitas as confirmações,"não tinham", justifica. Foi aqui que notaram "o desespero das pessoas que ainda não tinham conseguido ajuda para sair dali".
Um desespero que era visível à medida que se aproximavam de alguns locais, como da maior estação de comboios que chega à capital da Polónia e por onde têm passado milhares e milhares de refugiados - segundo dados oficiais deste país mais de 700 mil refugiados ucranianos terão passado até este domingo a fronteira do país.
"Havia muita gente a tentar sair dali. Uns choravam, outros pareciam tranquilos, o que impressiona muito porque todos devem ter vivido momentos terríveis, mas todos a tentar ao máximo voltar à normalidade", comenta.
As famílias que lhes estavam 'destinadas', duas delas já com vivência em Portugal, aguardavam a comitiva no local marcado e assim que chegaram "começaram logo a ajudar-nos a descarregar os carros e a fazer o que podiam para comunicarmos com as pessoas e resolvermos tudo".
A partir daqui, foi fazer o que era possível para conseguirem o objetivo de levar o maior número possível de refugiados, "os pedidos de ajuda foram aumentando e pediram-nos que levássemos todos os que pudéssemos, mesmo nos lugares mais pequenos", foram chegando.
Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros portugueses, Portugal já recebeu mais de 1500 pedidos de ajuda refugiados ucranianos, mas no total estima-se que mais de 1,7 milhões de pessoas já saíram do país. No sábado chegaram ao aeroporto de Lisboa os primeiros 30. "Ontem (sexta-feira) partiram daqui (Varsóvia) mais 45, devem chegar domingo a Portugal", diz Beatriz.
Estava quase na hora de partir para Lubin, Beatriz pede desculpa por estar a falar connosco e ao mesmo tempo estar a responder aos companheiros de viagem. "Bea, vens ou ficas", ouve-se. Ela responde: "Vou agora". Despedimo-nos. A missão agora era buscar mais 10 refugiados em Lubin e depois partir rumo à fronteira com a Alemanha. À hora da publicação desta peça, a viagem desta caravana humanitária, uma entre várias que muitos portugueses começaram por organizar, às primeiras horas da guerra, decorria. E, pelo menos, a sensação de que tinha feito algo para ajudar os outros, essa trazia consigo.