"Bastava um rabino dizer que frequenta a sinagoga e é sefardita. É o caso de Roman Abramovich"
As autobiografias não são um género literário abundante entre os portugueses, mas o médico Joshua Ruah (n.1940) interrompe esse silêncio que esvazia a memória coletiva nacional com o relato da sua vida, apropriadamente intitulado Um Judeu de Lisboa, que ao mesmo tempo se torna um espelho da sociedade do último século. Pelo livro passam todos, desde Salazar, de quem é crítico, até muitos outros da medicina, da cultura e da política, bem como do traço que considera definir melhor a sua personalidade: ser judeu. É dessa forma que inicia estas memórias: "Talvez seja a minha recordação mais antiga, a da festa dos meus três anos." A partir dessas primeiras palavras surge tudo: a família judia radicada em Lisboa, a II Guerra Mundial, o Estado Novo, a Guerra Colonial, seguindo-se a Democracia e os seus muitos protagonistas, a maçonaria, bem como a vida dedicada à profissão.
Não era sua intenção escrever o livro nem lhe interessa se vai ser muito lido, mas, suspeita, que quem já operou milhares ao longo de 50 anos e, costuma dizer, encheu "três estádios do Benfica de pessoas a quem deu consultas», poderá resultar em muitos interessados no que conta. Define-se como "judeu não ultra praticante mas convicto culturalmente".
Qual a razão desta autobiografia?
Não fazia tenção de o fazer, mas os meus filhos insistiram em que deixasse umas memórias sobre tudo o que fiz na vida. Eu nunca escrevi nada, disse-lhes, mas o meu filho mais novo arranjou uma pessoa que me ajudou (Joana Stichini Vilela) e no período em que ninguém saía de casa, no período auge da pandemia, comecei a falar com ela pelo Zoom e a dada altura, ao fim de vários meses, envia-me um texto com a conversa e pergunta-me porque não se deveria publicar. Disse-me que havia uma editora interessada, a Editorial Caminho, e um editor que fazia uma aposta no livro, o Zeferino Coelho. Em seguida ouvi a opinião do jornalista António Valdemar, que gostou e aceitou escrever o prefácio... e aqui estamos.
Escolheu um título muito direto: Um Judeu de Lisboa. Só podia ser este?
Sim, porque eu sou de cá, servi o exército português no tempo do Dr. Salazar, e só me posso descrever assim. A minha família não gostou muito do título, mas respondi: de onde é que eu sou e o que sou? Antes de ser médico já era judeu. É um carimbo que levamos e nunca mais sai; ainda agora com esta situação na Ucrânia isso se viu, pois ouvi o Francisco Louçã dizer na sua rubrica televisiva, ao referir-se ao presidente Zelenski, essa caracterização. Dizer-se que é um judeu tanto pode ser um elogio como uma condenação.
No seu caso foi uma condenação?
Não, para mim nunca foi, pelo contrário. O que se pode ver quando em 1978 assumi a direção da Comunidade Judaica de Lisboa e alterei a política de low profile anterior para que se tornasse mais conhecida. Discordava, principalmente a seguir ao 25 de Abril, que os judeus não existissem em Portugal quando comparada com outras comunidades. Desenvolvi um estilo de apresentação da comunidade diferente, fui à Assembleia da República várias vezes, debati no jornal do Partido Socialista o nosso passado salazarista, e como havia ainda uma exacerbação anti-tudo nessa época defendi várias posições.
No Estado Novo a comunidade era apagada?
Durante essa época, como conto no livro, fui fazendo a minha vida normal e mantive excelentes relações com outras comunidades na maior parte das vezes, como a islâmica. Nunca percebi muito bem o que as pessoas chamam um Deus, porque no próprio judaísmo Ele não existe mas sim um Ente que foi considerado o Criador.
Escreve que nos anos 1960/70 ainda havia muitos judeus clandestinos em Portugal.
É uma situação diferente, porque nesse caso ainda é uma consequência da Inquisição e tem muito pouco a ver com o Estado Novo. Por exemplo, estive em Belmonte em 1964 na sinagoga de lá no Dia do Perdão e percebi o problema deles. Um judeu com quem me encontrei disse que em Lisboa a Inquisição já acabara mas em Belmonte não e o seu representante era o padre católico, que os denunciava à PIDE por não irem à missa. Isso fez-me pensar no assunto e acabei por fazer mais de duzentas circuncisões lá quando decidiram modernizar o judaísmo como o praticavam. Hoje estou arrependido, porque tinham um rito judaico próprio da clandestinidade, que desse modo acabou em vez de ter sido preservado.
Como vê a questão dos sefarditas que têm obtido a nacionalidade portuguesa...
... Essa é uma questão simples... foi uma iniciativa do PS e do CDS e com a qual a comunidade judaica nada teve a ver. Foi uma atitude que disseram ser de reconciliação, mas não é bem assim pois não havia uma guerra. Em 1996, era o Jorge Sampaio Presidente, fazia 500 anos o decreto de expulsão dos judeus de Portugal e eu que o conhecia desde a escola - tecnicamente, o Sampaio era judeu pelas leis judaicas porque era filho de mãe judia e neto de avó judia, mas não era praticante, pelo contrário, ateu convicto - e mantivemos sempre uma relação. Quando se deu essa data, a comunidade não a quis deixar passar em branco e resolvi falar com o Presidente e, simultaneamente, um judeu. Disse-lhe que não o queria encravar de forma pública, mas os 500 anos deveriam ser assinalados e queríamos fazer essa referência e convidá-lo para presidir a uma comissão. Ele disse que não, pelo menos sozinho, e então sugeriu que ia convidar o presidente do Estado de Israel. Eu avisei-o de que politicamente podia ser controverso, mas ele respondeu que as coisas têm de ser como devem e nomeou um embaixador da sua Casa Civil e um outro colaborador para se avançar. Decidimos chamar à iniciativa Memória e Reconciliação. Porque as coisas não se esquecem, mas podem reconciliar-se. E foi uma cerimónia em grande.
Citaçãocitacao"O Salazar aparece sempre como a grande intelectualidade do país, mas quando se fizer a História veremos que é um homem com uma intelectualidade bastante popular."
Daí até este perdão que permite nacionalidades vai uma grande distância!
A dada altura o Dr. Mário Soares, que conheci bem e era um homem intuitivo, resolver fazer o que chamou de presidências abertas, um movimento político anti-cavaquista. Num desses dias, estando longe do que me esperava enquanto operava, veio uma enfermeira comunicar-me que ele queria falar comigo urgentemente. E o que me disse foi que na semana a seguir havia uma Presidência Aberta em Portalegre e que iria a Castelo de Vide fazer um discurso de perdão pela Inquisição. Acrescentou: "E tem de fazer um discurso que introduza o meu". Fiquei sem saber o que fazer, mas lá escrevi umas notas para me orientar. Achei a atitude de Soares com um objetivo político, incluída naquele contexto de uma certa contenda com o Governo, mas já um ano antes o Rei de Espanha tinha feito o mesmo.
Mas concorda com esta atribuição de nacionalidades?
Quando foi votada em 2015, essa lei pareceu-me ter uma unanimidade. Mesmo que houvesse outras razões, entre elas a de confrontar a própria Igreja com a sua antiga atitude e tirar algum poder que a instituição ainda mantinha. Na realidade, o que pensei existir era um conjunto de movimentações políticas sem importância, só que a lei portuguesa, ao contrário da espanhola, não estabelecia prazos. Achei que o assunto teria de ser tratado com pinças porque poderia haver movimentos contra e foi assim que o processo começou. Só que a direção da Comunidade Judaica de Lisboa cai, devido a um movimento estranho e a dada altura aparece um sujeito com pouca ligação a nós, com dupla nacionalidade portuguesa e israelita, que foi buscar colaborações de quem nunca aparecia e ao fazer uma oposição capaz, ganhou a direção por três anos.
Essa proposta ia longe de mais?
Essa é uma afirmação que tem de ser feita também com pinças... eles tomaram conta daquilo e só fizeram grandes asneiras. Em certo momento é dado à Comunidade Judaica do Porto a mesma autorização e percebe-se como a lei foi escrita de forma dúbia, afinal o que diz é muito simples: as pessoas que demonstrem ter ascendência de judeus expulsos de Portugal e que a possam provar documentalmente, podem readquirir a sua nacionalidade. Nesse interregno da nova direção, a Comunidade Judaica de Lisboa tinha uns quantos historiadores que faziam o estudo dos processos que entravam. Entretanto, houve umas questões entre a comunidade e o rabino que arranjaram, eu estive à cabeça dessa oposição, e acabámos por correr com o rabino e a direção. Chegou-se à conclusão que existia em lista de espera de quem requeria a nacionalidade umas três mil pessoas. Então, a direção contratou mais historiadores de modo a pôr os processos em dia. Diga-se que as comunidades não têm qualquer autoridade, ou seja, verificam os processos, enviam para a conservatória, que analisa e dá ou não a nacionalidade. A interpretação de Lisboa foi esta, mas a do Porto foi outra, completamente diferente.
Qual era a do Porto?
Foi a de que bastava como prova um rabino de uma sinagoga sefardita - até podia ser da Cochinchina - dizer que fulano de tal frequenta a nossa sinagoga e é do rito sefardita e pouco mais. É o caso desse "futebolista", o Roman Abramovich.
Que é o caso mais complexo?
Que é uma estupidez! A sinagoga do Porto é antiga, dos anos 1930, que surge de um movimento de um homem chamado Barros Basto. Ele era um judeu clandestino que se reconverteu ao judaísmo moderno e construiu essa sinagoga, oferecida por uma família que vivia em Hong Kong, judeus expulsos de Portugal e da comunidade sefardita de Londres. Ele fez um estudo sobre os judeus clandestinos do norte de Portugal e chegou a ter mais de trinta sinagogas a funcionar nessas terreolas de Trás-os-Montes, Alto Douro e Beira Alta. Ele irá ser perseguido em três frentes: o exército, a Igreja e o Estado Novo. Não foi acusado de ser judeu mas de pederasta, porque fazia circuncisões. Esse processo ficou em segredo de justiça e só muito mais tarde é que foi de conhecimento público.
Pode-se dizer que a Comunidade Judaica do Porto facilitou o processo?
Não se deve dizer "facilitou", no entanto a Comunidade Judaica do Porto cortou relações com a de Lisboa pois queria que nós lêssemos o processo do russo e recusámos, porque a de Lisboa não tinha como missão fazer censura. Eles tomaram a resposta como ostensiva.
Porque iria ser polémica?
Sim, mas voltando ao "facilitou", o mais correto é dizer que a Comunidade Judaica do Porto utilizou outros critérios. Na realidade, o que decorre disso é a Procuradoria-Geral da República estar a investigar esse caso.
Durante a sua vida conheceu muitas pessoas mas na sua autobiografia o que mais surpreende é ter cumprimentado Yasser Arafat!
É verdade, o Yasser Arafat se não fosse tão mau mais parecia uma figura carnavalesca. Ele era um homem muito rico e tornou-se dirigente da Organização para a Libertação da Palestina antes do problema israelo-palestiniano. Tudo começou com o Setembro Negro [período entre setembro de 1970 e julho de 1971], em que houve uma luta dos palestinianos contra a monarquia da Jordânia - algo de que já todos se esqueceram. Ao serem corridos desse país, começam a doutrinar palestinianos que viviam em Israel e criou-se uma situação complicada. Já me perguntaram o que penso desse conflito e eu respondi com a minha profissão; que os médicos têm um defeito, verem os assuntos políticos mais atuais e polémicos como uma doença. Acho que este conflito é uma doença crónica e para a qual ainda não se descobriu a cura. Provavelmente, existirá um tratamento, mas naquele momento encontrava-se num estado de grandes episódios de agudização de guerra a que se seguiam anos mais calmos.
Foi difícil cumprimentar Arafat?
Não, nunca me é difícil cumprimentar alguém. Ele disse-me que quando falavam de judeus era como falar dos "nossos primos". E eu respondi-lhe que havia maneiras melhores de tratar os primos. Depois, jantei com ele depois durante a Presidência de Sampaio e estava com um Parkinson muito avançado. Era um homem muito diminuído.
Tratou Álvaro Cunhal. Também estava diminuído?
Ele nunca foi uma pessoa diminuída. Ele não tinha uma doença neurológica mas cardíaca, arterial e prostática, também oftalmológica. Era um homem de uma grande lucidez e o que escrevi no livro é reconhecido por todos; era alguém que continha duas pessoas. Aliás, conversávamos muito porque ele ia fora do horário das consultas e na altura criticou muito o seu sucessor, o Carlos Carvalhas. Um dia até me questionou porque sendo eu uma pessoa tão crítica em relação à situação nunca fazia afirmações durante as nossas conversas sobre o PCP, e eu respondi-lhe que não ia ensinar ao vigário o que ele sabe melhor. Respondeu-me: "Pois é. Tem razão, mas devia falar porque aquilo lá está tão mau como nos outros partidos". Era um homem bastante diferente do que se imagina, com uma grande cultura.
Há um momento no livro em que diz ainda estar por escrever a verdadeira biografia de Salazar. Porquê?
Não está tudo dito sobre ele por ainda estarmos num período aquecido. O Salazar teve várias fases e aparece sempre como a grande intelectualidade do país, mas quando se fizer a História veremos que é um homem com uma intelectualidade bastante popular. Alguém que estudou, cultivou-se, mas mentalmente nunca saiu da sua terra e das pequenas coisas. Tenho no livro uma pequena frase em que digo uma maldade: Álvaro cunhal ofereceu-me os seus trabalhos autografados, o meu primo Samuel foi médico do Salazar e este ofereceu-lhe um peru no Natal. Essa frase define uma personalidade. Há uma biografia sobre Salazar [de Filipe Ribeiro de Meneses) que já diz qualquer coisa sobre isso. Na realidade, ele nem era de uma aristocracia portuguesa cristã, mas de uma camada média baixa e provinciana. Isso condicionou sempre a sua atitude, até a nível internacional.
Nota. A entrevista foi concedida antes dos recentes desenvolvimentos do caso que envolve a atribuição de nacionalidade portuguesa a Roman Abramovich pela Comunidade Judaica do Porto.
Joshua Ruah
Editorial Caminho
242 páginas