Foi um momento mítico na Sotheby's de Londres: o bater do martelo acabava de dar por arrematada a venda da famosíssima peça Girl with Balloon, no valor de 1,2 milhões de euros, quando um dispositivo acionado começou a destruir a obra a partir do interior da moldura. O espanto da audiência ficou registado num vídeo posto a circular nas redes sociais, e logo o debate estalou à volta do propósito da ação de Banksy: brincadeira, manobra publicitária ou arte pura e dura? Os especialistas preferem a ideia de "declaração artística"..Essa performance que aconteceu no dia 5 de outubro de 2018, ainda relativamente fresca na memória, é o primeiro caso abordado no documentário Banksy Most Wanted, de Aurélia Rouvier e Seamus Haley (disponível na Filmin). Um ponto de partida para explorar o fenómeno do artista de rua que se tornou o mais conceituado nome da arte contemporânea, cuja identidade permanece em segredo, um pouco à semelhança da "febre" Elena Ferrante na literatura..É inevitável que se questione o anonimato enquanto estratégia de marketing, mas um antigo agente de Banksy afirma que a escolha não terá sido deliberada. Para todos os efeitos, ele desafia a autoridade, daí que seja credível, pelo menos na origem, uma teoria de proteção da identidade, em vez de autopromoção.."É o Picasso do século XXI", diz um curador." "Girl with Balloon é o Santo Graal", afirma um colecionador de arte. As opiniões sobre Banksy não são comedidas, assim como o fenómeno está longe de ser coisa pouca. A valorização do seu trabalho - que consiste essencialmente em graffiti feitos a partir da técnica stencil, com poesia, génio irónico e/ou mensagem política - foi um processo súbito e impressionante. E não estamos a falar apenas da valorização por parte do público, desse milagre alimentado pela internet, mas da cotação das suas obras. Veja-se o exemplo: depois do referido episódio na Sotheby's londrina, Girl with Balloon, semidestruída, assumiu-se como uma nova obra de arte: o artista deu-lhe mesmo outro nome, Love Is in the Bin, e o valor duplicou....YouTubeyoutube424OixcxGNk.Com um cruzamento dinâmico de discursos, o que o documentário persegue é a imagem de Banksy para lá da curiosidade de um rosto, ao mesmo tempo que reflete sobre o poder social da sua arte. O facto é que este artista, que se presume nascido em Bristol, quebrou o acentuado snobismo do mundo da arte ao perverter o jogo da galeria. Ao contrário da maioria dos pares contemporâneos, ele apresentou-se como uma espécie de porta-voz das pessoas, sendo estas interpeladas e, na maior parte das vezes, confortadas pelos seus murais: por várias ocasiões a apropriação indevida de obras do artista levou à indignação de moradores orgulhosos pela presença de um Banksy na sua rua..Da Palestina a Chiapas, passando por Nova Iorque, Port Talbot, museus de Paris e tantas outras cidades do mundo, a ação artística de Banksy revela uma extrema atenção crítica a causas diversas ou, no fundo, um extraordinário sentido de omnipresença. E também por aí tem sido investigada a sua identidade. Em 2016, um estudante de jornalismo reclamou ter descoberto que ele era o vocalista dos Massive Attack, Robert Del Naja, devido à correspondência entre uma série de concertos da banda e o surgimento de uma pintura de Banksy em cada uma das cidades por onde passaram na mesma altura - tese negada pelo vocalista. Depois chegou a pensar-se que era o designer dos Gorillaz, Jamie Hewlett, e outra versão encontra o nome Robin Gunningham, de novo com base numa pesquisa que olha para o mapa..Embora esta última fique no ar, a verdade é que parte do fascínio está na manutenção do segredo e nas tentativas de lhe levantar o capuz. Há até quem diga que não existe apenas um Banksy, mas vários - talvez como os irmãos Lumière, inventores do cinematógrafo, que enviaram operadores à volta do globo para colher imagens em movimento. Seja Robin Gunningham ou Robin Banks (nome com que assinava antes de Banksy), estamos perante um Robin dos Bosques da arte contemporânea, o mais "famoso e invisível" dos artistas. Através da energia discursiva de Banksy Most Wanted, fica-se com um rol de pontos de vista a fervilhar diante da simplicidade dos desenhos. Um documentário que não faz mais do que analisar a história deste prodígio viabilizado pela era da internet.