Bairro de Molenbeek fez vigília contra o estigma do terrorismo

Ao fim da tarde, acenderam-se velas na Place Communale, na zona de Bruxelas onde, na segunda-feira, a polícia desencadeou uma operação para tentar capturar um dos terroristas dos atentados de Paris, Salah Abdeslam
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Jean-Pierre vive no bairro de Molenbeek, no coração de Bruxelas. Tem 80 anos, é padre, trouxe uma vela. Houla, 16, é de Antuérpia, a 50 quilómetros da capital belga, mas veio com mãe, Fathia, e com os irmãos, incluindo a pequena Doha, de 4 anos. Fathia trouxe velas para todos. E Noemie e Cecile, 11 e 14 anos, irmãs, que vivem logo ao lado da praça e adoram o "seu bairro", ou ainda Fadel, outro molenbeekoi, que faz bandeira de um molho de papéis onde o "O" de Molenbeek é o símbolo da paz. E também o jovem lusodescendente Joaquim da Fonseca, que nasceu em Bruxelas e vive há quatro anos no bairro da capital belga que "é fantástico", como diz, mas que nos últimos dias não sai das notícias pelas piores razões. Vieram todos.

Ontem, estiveram ali em vigília, na Place Communale, em Molenbeek, e acenderam velas. Luzes trémulas que o vento teimava em apagar, mas que muitas mãos pacientes reacendiam, uma e outra vez, para lembrar as vítimas dos atentados de Paris da última sexta--feira, e também pela paz. Para mostrar que "Molenbeek não é igual a terrorismo", como explica Patricia Polanco, a responsável do Centro Médico do Povo, uma ONG que há 15 anos atende ali gratuitamente os doentes que não podem pagar consultas, e uma das organizadoras da vigília, em colaboração com outras associações do bairro.

"Os media têm dado nestes dias uma imagem muito negativa de Molenbeek, só falam dos terroristas. As pessoas estão chocadas e stressadas com isso. Molenbeek é muito mais do que os seus problemas", defende Patricia Polanco.

Depois dos atentados da última sexta-feira em Paris, esta comuna de Bruxelas, com quase cem mil habitantes, a maioria marroquinos ou de origem marroquina, 70% muçulmanos, uma grande maioria jovens, tem sido uma constante nas televisões, depois de se ter sabido que alguns dos autores dos atentados eram de cá e depois da operação que a polícia belga montou aqui na segunda-feira para tentar capturar um deles: Salah Abdeslam, cuja família vive no número 30 desta praça.

A vigília de ontem era bem o espelho da miscelânea de culturas, de religiões, de línguas e até de vestes, numa diversidade de cores e estilos, com os universais jeans a combinar com os véus muçulmanos. Muito antes das 17.00, a hora marcada para a concentração, já a praça estava quase cheia. Por prevenção, a polícia vedou os acessos ao local e nas passagens controladas toda a gente era revistada. Se havia, a princípio, alguma tensão, ela acabou por se dissipar. Passava pouco das 17.00, e já com a praça repleta - três a quatro mil pessoas -, a organização pediu um minuto de silêncio pelas vítimas de Paris e pelas suas famílias. Depois ouviu-se a explosão dos aplausos e os gritos em uníssono: "Todos juntos, solidariedade! Todos juntos."

Pobreza facilita radicalismo

A presidente da comuna de Molenbeek - o equivalente às nossas câmaras municipais -, a liberal Françoise Schepmans, que está no poder há três anos, e que decidiu associar-se à vigília, agradeceu à multidão "o apoio". Mas ficou por ali, porque o microfone, a seguir, falhou. Ao DN, Françoise Schepmans afirmou que a maioria da comunidade no bairro "está bem integrada", mas admitiu que "é preciso mais. "É preciso trabalhar mais na ruas, com as pessoas, para aumentar a segurança, e mais colaboração entre a polícia federal e a local", que ela já pediu e que já lhe foi prometida pelo governo federal. Reconhece que "há muita pobreza no bairro, muitos jovens desempregados", e que isso "facilita a vida aos radicais". Os fundamenalistas "têm aí terreno fértil, encontram eco em alguns jovens, especialmente nos que estão ligados à pequena criminalidade e à droga", diz Françoise Schepmans, que acredita estar a fazer o trabalho social para contrariar o problema.

Há quem não concorde. No Centro Médico do Povo, por exemplo, a visão é oposta. "Nos últimos três anos, a presidente cortou fundos às associações locais", garante Lee Vermeulen, uma das médicas.

Joaquim da Fonseca, que trabalha com jovens noutra comuna mas faz a articulação do centro médico com a comunidade, concorda que há muito por fazer. "Este é um bairro muito pobre, com muito desemprego juvenil, há problemas com a polícia, porque não existe um policiamento de proximidade, e não vou negar que existe obscurantismo radical", diz. "Esses jovens desintegrados, que sentem não ter futuro, são uma reserva fácil para os radicais atuarem. A Bélgica é um país rico, tem de investir na educação e na comunidade para uma maior integração de todos." Joaquim sabe do que fala. Belga, filho de portugueses, é casado com uma belga de origem marroquina, médica e muçulmana. Ele sente-se belga, ponto. Para ela, não tem sido tão fácil.

Enviada especial a Molenbeek

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