Linha vermelha em torno do Chega? "Não. Mas linha alaranjada, sim"
António Bagão Félix, 72 anos, natural de Ílhavo, Aveiro, confessa que a natureza e a botânica são, para ele, uma vitamina para a alma. Jovem estudante, hesitou por isso entre a Economia e a Agronomia, mas acabaria nos números e com muitos anos de trabalho no setor dos seguros. Depois, haveria de surgir a política, tendo feito parte de vários governos, como ministro ou secretário de Estado, nas áreas das Finanças, Segurança Social, Trabalho e Formação Profissional. Independente por convicção e dependente por liberdade, é o que costuma dizer de si próprio. Foi também vice-governador do Banco de Portugal e professor universitário - dar aulas é, de resto, outra das suas paixões.
Há uma ano, mais ou menos por esta altura, classificava o Orçamento do Estado (OE) para 2020, portanto, aquele que está em vigor, como sendo um orçamento de inércia. As contas para 2021, aprovadas há pouco tempo, que adjetivação lhe merecem?
É um Orçamento completamente diferente, sobretudo por causa das incertezas e, principalmente, imprevisibilidades - um grau superlativo da incerteza - que resultam da pandemia. Portanto, se eu tivesse de qualificar com uma simples metáfora este OE, diria que é um Orçamento mais bem feito ou menos bem feito, mas um Orçamento sobre uma fina camada de gelo.
Ou seja, tudo isto é muito frágil...
Tudo isto é muito frágil. Não há macro economista que consiga prever com adequação as situações que estamos a viver e ainda viveremos certamente durante o ano de 2021, infelizmente.
Mas discorda de alguma noção que este Orçamento encerra, ou não?
Não, este Orçamento tem, à partida, a questão da imprevisibilidade, tem também a questão de ser um Orçamento cada vez mais sujeito ao garrote da dívida, que atinge valores de facto nunca pensados. Por outro lado, é um Orçamento que tem de fazer frente, do lado da despesa - e do lado da receita, com menos receita e com mais despesa - à situação do combate à pandemia e das suas consequências na economia e na sociedade. Tem também o constrangimento que resulta de ser um orçamento de um Governo minoritário e, portanto, sujeito a discussões de retalho, não no sentido depreciativo, mas no de medidas avulsas, que, por sua vez, tendem a desvirtuar o Orçamento como um todo, concorde-se ou não se concorde com ele. Este é um dos pecados originais e que, de algum modo, ultrapassam a vontade dos seus proponentes e, também, dos seus opositores.
Um desses casos poderá ser o do salário mínimo nacional? Concorda com o aumento do salário mínimo e no montante decidido pelo Governo - 30 euros -, para os 665 euros por mês?
A questão do salário mínimo é uma questão sobre a qual não é fácil ter uma posição a preto e branco. Não tenho uma perspetiva maniqueísta, aliás não tenho uma perspetiva maniqueísta em quase nada, porque o maniqueísmo é uma doença das sociedades e que deve ser combatida. Por um lado, é indiscutível que um aumento do salário mínimo, quando este está em 635 euros e passa para 665 euros, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e sensibilidade social e humana, não pode estar contra. São valores baixos e nós sabemos que são. Este é o primeiro ponto. Eu sou a favor do aumento do salário mínimo nacional enquanto não se atingirem valores que respeitem integralmente a dignidade das pessoas, dos trabalhadores, e que deem a hipótese de se ter um modo de vida que permita, por exemplo, aumentar a possibilidade de haver filhos numa família, de haver melhor educação, isto é, que possa não só satisfazer as necessidades essenciais de qualquer família ou pessoa, mas possa ir um pouco mais além. Este é um primeiro ponto.
Mas do outro lado temos as empresas a dizer que não conseguem suportar isso.
Ora bem, quanto ao segundo ponto há a questão das empresas não o suportarem. Neste momento, até podemos dizer que há uma inoportunidade, pois muitas das empresas estão perto do seu óbito ou a lutar com dificuldades bastante elevadas. Quando não havia a questão da pandemia, eu costumava dizer - agora tenho de ter alguma cautela em dizer isto, mas costumava dizer - que quando as empresas não aguentam um salário mínimo de 500 ou 550 euros, algumas delas são ficções de empresas. Porque a empresa, por um lado é capital, por outro é trabalho, e o trabalho tem de ter regras de mínimos aceitáveis que têm de ser compagináveis com a sustentabilidade de qualquer empresa. Agora, evidentemente que este ano há essa questão da pandemia, das dificuldades das empresas. Há alguns apoios, tanto quanto sei, ao nível da taxa social única (TSU).
Sabe-se que o Governo vai compensar as empresas por esta despesa transitoriamente, através da TSU, devolvendo parte dela. Na prática, isto significa que serão os contribuintes a pagar, mesmo que parcialmente, este aumento do salário mínimo. É uma leitura correta?
A medida é transitória, temporária e, temporariamente, eu compreendo-a. Se fosse para sempre, não fazia sentido e, aí, a resposta à sua questão era afirmativa. As empresas têm de subsistir numa economia de mercado, numa economia social de mercado. Agora, há dois ou três fatores que eu ainda gostaria de registar sobre a questão do salário mínimo. O primeiro é que de acordo com estatísticas, não deste ano obviamente, mas, salvo erro, de 2017, cerca de 45% das novas contratações fizeram-se pelo salário mínimo.
Que se aproxima, cada vez mais, do salário médio...
Segunda consequência: a convergência, cada vez mais, entre o salário mínimo e o salário médio. Em 2010-2011, há cerca de dez anos, o salário mínimo correspondia a cerca de 50% do salário médio. As estatísticas de 2018 dizem que está em 60%.
O aumento do salário mínimo está a fazer baixar a média das remunerações, é isso?
Não, não, não. O aumento do salário mínimo existe, simplesmente, os salários para além do salário mínimo não sobem, portanto aproximam-se, convergem. É uma convergência que é boa por um lado - aumenta o salário mínimo -, mas é má por outro porque não aumenta tanto os salários acima do salário mínimo. Isso tem consequências, por exemplo, ao nível de uma economia de mérito, onde o salário seja uma forma de distinguir a produtividade, a competência, a qualificação. Nós estamos a falar em termos brutos, em termos líquidos essa convergência ainda é maior. Este é um ponto que merece reflexão, sobretudo quando uma das nossas batalhas fundamentais, direi mesmo, a fundamental, a travar é a da produtividade.
Em relação às contas da Segurança Social - foi ministro, teve esta tutela, é um dossier que domina -, à luz do que tem sido gasto em apoios resultantes do combate à pandemia, sente que há motivos para estarmos preocupados com as contas da Segurança Social, ou não?
Há motivos para estarmos preocupados com as causas que levam a maiores gastos da Segurança Social. Agora, a Segurança Social, o Estado social, também existe justamente para acorrer a situações de desigualdade e de grandes dificuldades sociais em momentos de crise. É a lógica do seguro, ou seja, há sinistros, no sentido segurador do termo, há eventualidades, para usar a expressão técnica da Segurança Social - a eventualidade do desemprego, de estar em casa, de ter de estar junto dos filhos, de questões de layoff, etc. - que levam a que haja mais gastos na Segurança Social, mas eu direi que ainda bem, é porque temos esse sistema, que existe também para isso. Portanto, não me preocupa. Só me preocuparia se fossem tomadas medidas que prejudicassem as necessidades a médio e longo prazo. Esperemos todos que não seja o caso e, sendo assim, não estou preocupado. Pelo contrário, estou consolado com a ideia de termos um sistema social que pode, e deve, combater as situações de dificuldade por que as pessoas passam.
Tem sido muito crítico em relação ao Novo Banco, em relação à necessidade de estar constantemente a financiar aquilo. Concorda com o travão que foi metido neste ano no Orçamento do Estado? Acha que um contrato entre o Estado e o Novo Banco pode ficar dependente da possibilidade de haver uma maioria que aprove ou não um orçamento retificativo? Como é que vê esse problema?
Eu, se fosse deputado, decidiria abster-me de forma a que não houvesse essa norma travão, ou votar contra, dependeria da situação, embora a minha posição fosse mais de abstenção.
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Portanto, para ficar claro, é contra a norma de travão?
Sim, sou. Sou contra norma de travão, porque o Estado tem de se comportar como uma pessoa de bem. A ética pública anda pelas ruas da amargura. Vemos agora a questão da morte do ucraniano, em que o Estado foi verdadeiramente indigente e onde também, os membros políticos, neste caso, membros do Governo, acham que a responsabilidade de Estado se extingue no domínio técnico. Não, a responsabilidade do Estado também implica responsabilidade política. O Estado, bem ou mal - em meu entender mal -, fez um contrato, no anterior Governo de António Costa, para vender à Lone Star 75% do Novo Banco e, no meu entender mal, abriu a porta escancaradamente a cerca de quatro mil milhões de euros. Isto num banco que se dizia que já tinha deixado todas as imparidades do lado do banco mau, enfim, todas essas falácias que nos atiram para dizer que os contribuintes não pagam... no fim, os contribuintes pagam tudo. Portanto, eu sou institucionalista nesse domínio e o Estado celebrou esse contrato, é uma pessoa de bem e mais do que isso - é importante que não se deem sinais exteriores, num país com este grau de dívida pública e com esta dependência do Banco Central Europeu e no contexto da própria União Europeia e da zona euro, de que há um Estado que pode deslaçar um contrato que firmou livremente.
Portanto compreende que o primeiro-ministro tenha tido como primeira preocupação falar com a presidente do FMI para acalmar as coisas?
Sim, claro. No meu entender fez muito bem. Agora, a outra parte: eu compreendo, por exemplo, a posição de Rui Rio quando diz, "Não, nós vamos respeitar o contrato, mas queremos que haja uma auditoria prévia que nos permita ter todos os dados para comprometer o Estado numa atuação resultante de uma obrigação contratual". Em suma: se eu pudesse ter a posição ideal, essa norma de travão não seria aprovada, mas a auditoria seria acelerada e seria discutida brevemente, de maneira a não prejudicar nenhuma das partes e todos saírem numa posição eticamente respeitável desta situação.
E sobre a TAP, admite que a companhia aérea possa ser o futuro Novo Banco para os contribuintes? Foram 1200 milhões de euros neste ano, serão 970 milhões no próximo. Corremos o risco de termos, também na TAP, injeções de dinheiro atrás de injeções de dinheiro?
A TAP é um caso laboratorial de como não se devem fazer as coisas. Em política não basta fazer as coisas bem, é preciso fazer as coisas certas, e bem. Aqui, nem foi certo nem foi bem. O que é que eu quero dizer com isto? A privatização pareceu-me feita nuns moldes um pouco inadequados, designadamente, os parceiros estrangeiros que foram considerados... bastava nós cheirarmos um bocadinho ambiente para ver que eram parceiros, não direi de "toca e foge", mas com um comprometimento relativamente ténue. Depois, o anterior Governo de António Costa resolveu fazer uma coisa absolutamente inédita e estapafúrdia em meu entender, que foi voltar o Estado a ter 50% do capital, isto é, a maioria relativa, quando os outros acionistas são disseminados, porque também há partes dos trabalhadores - 5% do capital, salvo erro -, e, tendo a maioria, ficando o principal acionista, não interferir na gestão. Tivemos a questão dos voos seletivos, que é um caso paradigmático de como o Estado disse, "Bom, nós ficamos com a parte importante, mas a gestão não é nossa", o que é uma figura, de facto, estranhíssima. Depois, com todas as consequências resultantes da pandemia, a crise sanitária, etc., a aviação comercial, além de ser um mercado ferozmente competitivo, é um mercado que ficou muito abatido. Dito isto, a questão que se coloca agora é a seguinte: transformar a TAP numa TAP mais pequena, como já ouvi dizer numa "tapzinha". A questão para o futuro, e prende-se com a sua pergunta, é se essa "tapzinha" pode algum dia voltar a ser uma TAP. A passagem da TAP para a "tapzinha", com brutais sacrifícios das pessoas que ficam desempregadas, com redução dos salários e tudo isso, da redução de slots, de rotas, de aviões, com mais sangue ou com menos sangue faz-se. Aliás, vai-se ser obrigado a isso para haver a hipótese de capitalizar a empresa, porque o principal fator de estrangulamento da TAP, para além dos custos excessivos, é o endividamento elevadíssimo. E depois? Mas é muito difícil voltar a retomar a posição anterior. A TAP é chamada uma companhia de bandeira...
Isso é só propaganda, é só conversa?
Eu não sei, não sou técnico disso. Eu pessoalmente, como cidadão e contribuinte português, gostaria que houvesse uma companhia portuguesa que pudesse disponibilizar três pontos que eu acho que são essenciais numa companhia de bandeira, que são: a ligação com as regiões autónomas, a ligação com os países de expressão linguística portuguesa e a ligação com a diáspora portuguesa.
Mesmo que isso desse prejuízo ao contribuinte?
Sim, porque não? É como a REN e as telefónicas colocarem...
Numa lógica de serviço público puro e duro, independentemente da rentabilidade ou não?
Sim, sim. Aí tem de haver alguma retificação da economia de mercado. É a mesma coisa que fazer-se uma instalação elétrica numa aldeia onde vivem dez pessoas. Evidentemente que dá prejuízo económico, mas essa bitola não é a única. É nesse sentido que eu compreendo a ideia de companhia de bandeira. Quanto ao resto, esse parece ser um conceito que está cada vez mais enfraquecido num mercado bastante competitivo.
Portanto, no seu entender, isto não passa por uma liquidação da empresa?
Não, não passa por uma liquidação da empresa, mas é um risco que pode existir no futuro.
Mas é um risco que decorre da própria gestão da empresa ou do contexto geral da pandemia que mandou a aviação toda para o chão?
Do contexto geral da pandemia e do arranque pós-pandemia, porque vai ser ainda mais brutalmente competitivo, em que, naturalmente, na demografia empresarial das companhias de aviação vai acontecer que umas morrem e outras nascem. Reparem que também não é nenhuma tragédia, a Swissair acabou, a Sabena acabou, e a Bélgica e a Suíça não ficaram propriamente fora do contexto do mercado competitivo e de disponibilização de rotas para os seus cidadãos.
Ainda que em momentos diferentes... Agora, se bem entendemos, a pandemia é a gota de água que faz transbordar um copo que tinha vindo a acumular sucessivos erros, quer na privatização quer no momento em que o Estado decidiu de novo assumir a maioria do capital.
Sim, e em investimentos feitos anteriormente para mercados que não seriam talvez os mais adequados - a questão da manutenção no Brasil...
Andando um pouco para trás, tínhamos uma TAP, quisemos ter uma "tapzona" e corremos o risco de termos uma "tapzinha" ou mesmo nenhuma.
Exatamente. Essa já é uma certeza. A única dúvida é se essa "tapzinha" pode ultrapassar as barreiras e, de algum modo, ser uma TAP mais sólida, mais pequena e sem custos para as pessoas, porque isso é, de facto, uma questão que não se pode colocar sempre. Longe de mim ser demagógico, nem sequer gosto de fazer análises descontextualizadas, mas o valor que disse relativamente à TAP, cerca de três mil milhões de euros - nesta fase, atenção, já não se conta para trás nem para a frente - é superior ao conjunto dos valores disponibilizados para favorecer as empresas em dificuldade no nosso país, no domínio da restauração, do turismo, etc. Ou seja, só a TAP leva mais do que toda a economia junta. Portanto, nós temos o direito, além do dever, de nos questionarmos, "Mas como é que é isto?" Para a banca foram mais de 20 000 milhões, para a TAP vai ser isto, etc., etc. Depois, nós falamos muito de centros estratégicos nacionais, mas de conhecimentos não há, eletricidade não há, redes elétricas não há, banca não há, seguradoras não há, aeroportos não há... Este, digamos, é o último anel.
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João Leão está há seis meses como ministro das Finanças. Que avaliação faz destes primeiros seis meses de mandato? Trouxe algo de novo à gestão das finanças públicas ou observa este início de mandato como uma continuidade das políticas de Mário Centeno?
Tenho alguma dificuldade em responder a isso, primeiro, porque está há seis meses; segundo, porque...
...Há seis meses, mas já com o Orçamento aprovado.
Sim, claro. Segundo, porque vendo do lado de fora, que é o meu caso, o atual ministro das Finanças tem sido muito defensivo mediaticamente falando, com pouca exposição pública - não tem dado entrevistas, a não ser na questão do Orçamento. Eu creio que o atual ministro das Finanças, no que se refere à parte orçamental - ele, aliás, era secretário de Estado do Orçamento - é uma pessoa que me parece tecnicamente muito habilitada. Em todo o caso, sinto, posso estar errado, mas é o que eu pressinto, ele não tem o peso político, nem nacional nem europeu - muito longe disso - que tinha Mário Centeno, concorde-se ou não com as posições de cada um. Isso nota-se, por exemplo, nestas questões todas do apoio às empresas, relacionadas com as medidas para combater os efeitos nefastos da crise, temos visto o ministro da Economia e não tem havido nunca o ministro das Finanças. Isso é revelador de que o seu peso é um peso menor. Evidentemente que a consequência de uma situação em que o ministro das Finanças tem um peso menor é que a despesa pública aumenta.
Pensa que o processo que conduziu à aprovação do OE para 2021 ditou o fim definitivo da geringonça ou acha que a geringonça era, neste momento, uma coisa coxa, mas não caiu? E, em particular, como é que avalia o desempenho do PCP, porque votou contra o suplementar, mas agora viabilizou este OE e, aparentemente, está disponível - como eles próprios dizem, "O PCP conta" -, em comparação com o facto de o Bloco se ter posto ao fresco, como disse o primeiro-ministro?
Na primeira legislatura do Governo de António Costa, a sedução de aproximação ao poder que ele fez ao PCP e ao Bloco de Esquerda foi mais fácil porque, no fundo, era distribuir os benefícios de medidas populares que resultavam do deslassar da austeridade em que havíamos vivido. Aliás, com erros clamorosos que estamos a pagar, como voltar a reduzir o número de horas da função pública de 40 horas para 35 horas, ou seja, uma redução de 16,6% do tempo de trabalho. Portanto, quando se faz isso mantendo os salários, como era óbvio, aumenta-se o volume e, portanto, aumenta-se a despesa dos funcionários. É uma coisa trágica do ponto de vista macroeconómico, sobretudo quando a medida tinha já sido posta em prática. Ou como algumas medidas da área dos impostos, da área dos próprios benefícios sociais. Portanto, foi, de algum modo, uma solidariedade para distribuir os benefícios de menor austeridade face à legislatura anterior. Nesta legislatura acabou-se essa distribuição e o BE e o PCP tiveram consciência disso. Agora é exatamente o contrário, é os partidos serem solidários com medidas de sacrifício, algumas absolutamente necessárias. É curioso que o PCP, como bem disse, foi contra o orçamento suplementar e deixou passar o OE para 2021. O Bloco foi exatamente o contrário. Portanto, isto também mostra um pouco a primazia da tática conjuntural sobre um conceito estratégico da dita geringonça. Esse conceito estratégico, aliás, é difícil de existir.
Ou seja, é muito mais difícil de existir à esquerda do que à direita, o que cola a esquerda é muito mais ténue do que o que cola a direita.
Sim, tem razão. À esquerda, entre esses três ou quatro partidos, a partir de determinada altura, vão-se colocar as questões estratégicas do futuro. Alguns desses partidos não são entusiastas com a economia de mercado, não são entusiastas com o euro, não são entusiastas com a NATO - e estou a ser muito moderado, são mesmo contra -, não são entusiastas com a própria União Europeia, ou seja, com um conjunto de aspetos estratégicos e pilares, gostemos ou não, do nosso próximo futuro. Ao passo que à direita as coligações têm sido mais fáceis porque não há diferenças estratégicas, há mais diferenças táticas do que estratégicas. À esquerda há mais diferenças estratégicas do que pode haver táticas, sobretudo num momento de distribuição de ganhos.
Antecipa que esta legislatura não vai chegar ao fim?
Eu não sou politólogo, nem coisa que se pareça [risos], mas tudo depende da vontade do primeiro-ministro.
Acha que depende só dele?
Acho.
Olhando para o outro lado do espetro político, para a direita, que está também em rearrumação, o primeiro sinal concreto veio dos Açores, com o PSD e o CDS a abrirem portas ao Chega para a viabilização de um governo de direita - faria o mesmo?
Se fosse açoriano? Não sei, não tenho condições para o dizer. Por um lado, devo dizer, um pouco caricaturalmente e entre aspas, que me deu algum gozo haver essa coligação à direita - uma geringonça à direita ou uma caranguejola à direita - para o PS provar do seu próprio veneno.
Mesmo que o preço tenha sido abrir portas ao Chega?
Já lá vamos a isso, já lá vamos a isso. Quando Passos Coelho venceu as eleições quem formou governo foi, legitimamente, António Costa, o predador da noite. Agora ali, também foi um pouco isso [risos]. Nesse sentido, achei piada. De facto, a vida passa sempre por estas coisas. Agora, o Chega - eu sou completamente contra a maior parte das ideias do Chega. Sou um democrata-cristão no sentido doutrinário do termo, na economia social de mercado, no respeito pela primazia da dignidade e da centralidade da pessoa humana, na luta por uma coesão social, geracional, territorial. Todos esses aspetos que são, para mim, absolutamente essenciais. Portanto, não me posso identificar com o Chega. Acho que se puder ser sempre dispensado á direita o Chega, é uma boa notícia.
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Mas se tiver de ser, tem de ser...
Eu tenho alguma dúvida em separar André Ventura do Chega, porque eu não sei o que é o Chega, sinceramente. Só fala André Ventura e quando houve um congresso ou uma convenção forma conhecidas algumas propostas que me arrepiaram, do ponto de vista quase civilizacional. Qual seria o Chega que poderia entrar numa coligação à direita? Não sei. Essa é a primeira questão. Em todo o caso, e sem que isto signifique qualquer adesão à ideia do Chega da minha parte, que pode haver um perigo, dramático para a direita democrática no seu sentido mais europeu, mais moderno da expressão, que é o seguinte: se o Chega cresce bastante, é impossível, alguma vez, fazer um governo à direita.
Parece-lhe que é para aí que se encaminha a situação política do país, a direita não poder voltar a ser governo sem o Chega?
Admito nos próximos tempos, embora eu ache que estes movimentos como o Chega são movimentos que, de repente, esvaziam rapidamente. Atenção, nós temos até verificado isso lá fora. Vamos lá ver, o PCP e o BE, cada um à sua maneira, também defendem muitos aspetos que até historicamente não configuram uma lógica democrática - marxista-leninista, estalinista, maoista, etc. Eu sei que agora já estão, de algum modo, inseridos no sistema, mas se formos analisar, isso não é muito diferente do Chega, neste sentido de defenderem aspetos que não fazem parte daquilo a que nós chamamos o sistema. Ainda bem que o BE e o PCP conseguiram perceber que a sua vivência tinha de estar confrontada com aspetos de moderação, de democraticidade profunda, etc. Enfim, era bom que algum partido mais radical de direita o pudesse fazer. Eu não tenho muitas esperanças, mas é a vida.
Admite uma direita que o Chega integre, uma direita de governo, e, portanto, não vê como necessário que o PSD e o CDS digam: "Com o Chega, não falamos!" - uma espécie do tal cordão sanitário à volta do Chega - não acha que isso seja necessário? Não existe o perigo de o discurso do Chega se tornar dominante sobre o discurso dos outros dois partidos?
As últimas semanas mostram que esse perigo existe. Já está o André Ventura a pedir não sei quantos ministérios e outras coisas... Atenção que nos Açores não foi isso, eles não fazem parte do governo, fazem parte do apoio parlamentar da maioria.
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E o CDS? Bagão Félix não é militante do CDS, mas sempre foi um compagnon de route do CDS. O CDS corre o risco de desaparecer?
O CDS é o partido com mais dificuldades face à ascensão - pelo menos por aquilo que dizem as sondagens - do Chega. Isso é indiscutível. E acho que tem um problema, o discurso do Chega é muito mais atrativo para pessoas completamente descontentes - nesse sentido é, de facto, populista, porque dá soluções fáceis para problemas difíceis -, atrai pessoas que estão descentradas, desconsideradas, que estão com graves problemas. O CDS não oferece isso, oferece valores da democracia cristã, da defesa de aspetos que, aliás, juntamente com a social-democracia, fizeram a Europa do pós-guerra. Mas hoje temos coisas que ultrapassam todas as ideologias, que são as redes sociais, são as fake news, são as semi-fake news, as semi verdades ou a pós-verdade. Hoje, as armas ao dispor das forças políticas são tão mais iguais quanto menos da relação entre meios e fins, isto é, quanto mais infrações éticas se cometerem.
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Defende ou não que o PSD e o CDS têm de estabelecer um cordão sanitário em torno do Chega e não falar com o Chega em nenhuma circunstância? Ou isso não é viável, nem possível, nem necessário?
Não, linha vermelha, não, linha alaranjada, sim. Têm a obrigação de dizer que se o Chega quiser alguma vez fazer parte de uma solução parlamentar alternativa - alguma vez - tem de perceber que este caminho não é o adequado, e depois logo se verá.
Estou a ouvi-lo e a pensar se sente que nesta altura há um problema de falta de liderança também no centro-direita. Era bom para a direita que Passos Coelho e Paulo Portas voltassem ao ativo?
Sabe que uma das coisas que eu aprendi com a idade, e com a velhice já, de algum modo, [risos] é que com o tempo as coias ficam mais claras. Eu que também critiquei alguns aspetos da austeridade, como alguma insensibilidade social que houve no Governo Passos Coelho, hoje percebo que ele era, e é, uma pessoa que ainda tem muito a dar a Portugal.
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Paulo Portas, também?
Paulo Portas também, indiscutivelmente. São pessoas que, cada um à sua maneira, têm uma posição relativamente ao Estado, à coisa pública, que não deve ser descartada no próximo futuro.
Portanto, fazem falta à liderança do centro-direita?
Fazem falta, claro que fazem falta. Eu, por exemplo, até gosto das ideias que o atual presidente do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, tem. É um jovem, com valor, com princípios, é uma pessoa politicamente muito séria, muito forte, mas, evidentemente, o partido está órfão e a orfandade, a certa altura, é, de facto, uma restrição a qualquer partido, não é só ao CDS. Nesse aspeto, o CDS sofre mais do que o PSD.
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Sente que o líder do centro-direita neste momento é o Professor Marcelo Rebelo de Sousa ou sente que ele é alguém que podia ser isso, mas não quis ser isso?
Ele não deve querer ser isso. O Presidente da República pode vir do centro-direita, mas uma vez sendo Presidente da República deve atuar institucionalmente, independentemente do seu espetro político. Portanto, não se deve pedir ao Presidente da República e agora ao candidato que só represente uma parte do país, isso não.
Vai votar pela sua reeleição?
Sim, acho que é indiscutível.
Voltando atrás, a André Ventura, como é que vê ele dizer, por exemplo, que o Papa Francisco está a fazer muito mal ao cristianismo? O que é que ele procura com esse tipo de discurso?
Lá está, como é que eu posso estar de acordo com isso? Não estou, evidentemente. Não conheço André Ventura, nunca falei com ele, só conheço da televisão e dos jornais. Até se podem discutir alguns aspetos de qualquer Papa, da sua orientação. Como católico assumido gosto mais de uns papas do que de outros.
Mas este Papa Francisco não está a dividir a comunidade católica, não é demasiado progressista? Perguntamos isto ao católico António Bagão Félix.
Não. Acho que se olhar para a doutrina social da igreja, desde a Rerum Novarum de 1891, até à Caritas in Veritate de Bento XVI, e agora as encíclicas do Papa Francisco, verifica que tudo aquilo que o Papa está a dizer sobre a relação entre a economia e a sociedade vem desde a primeira encíclica. Portanto, indiscutivelmente, isso parece-me ser o ponto mais relevante. Agora, quanto ao Papa Francisco - não só quanto a ele, embora aqui se perceba que há uma diferença grande entre o anterior papa, Bento XVI, que eu apreciava muito, devo dizer, como teólogo, era uma pessoa com um pensamento magistral nos seus livros e o Papa Francisco - que, como ele diz, vem do fim do mundo, vem da Argentina, também temos de perceber a sua latinidade. Isso é bom para nós portugueses, até, mas por vezes, hoje, a igreja, no seu todo, tem tendência para ter uma perspetiva sobretudo política, no sentido mais nobre do termo. Isto é muito temporal e, por vezes, acho que devemos caldear um pouco a ideia do peso temporal com o peso espiritual. Ou seja, eu sou católico e gosto de ter a força da palavra espiritualmente falando, para me salvar a alma.
Há demasiada política na liderança da Santa Sé?
Às vezes há essa tendência, que é aproveitada mediaticamente. Eu percebo isso. Por exemplo, eu leio um determinado tipo de opiniões e depois vou ler os próprios documentos do Papa e vejo que não é aquilo que lá está, dessa maneira. Mas reconheço que é uma tendência enfatizar aspetos que, às vezes, fora de contexto parecem mais hiperbolizados do que doutra maneira.