Ayahuasca
Na vida já conheci muitas pessoas muito convictas daquilo em que acreditam, políticos inteiros, crentes pios, sportinguistas que nunca vaiaram o verde. Mas há três coisas de que me falam com uma verdade como não encontro em mais lado nenhum: cursilhos de cristandade, psicanálise, a ayahuasca. E precisamente por esta ordem, por esta ordem de entrada na minha vida, por esta ordem de intensidade espelhada na alma de quem por lá passou.
Os Cursilhos de Cristandade foram (ainda são?) um movimento católico criado em meados dos anos 1940 em Espanha. A ideia-base, o carisma, é um método de conversão em pequenas equipas, em contextos familiares. Pouco importa agora, o que importa é que os casais que conheci que foram cursistas, é a palavra, falam desses tempos, desse método, como altamente transformador mesmo passados 50 ou 60 anos. Também os meus amigos e conhecidos que fazem psicanálise (não é psicoterapia, seja de que escola for, é psicanálise) têm o mesmo brilho de alma tranquilo.
Mas nada se compara com aqueles que usaram ayahuasca. A ayahuasca é uma bebida feita à base de duas plantas (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, esta com efeitos psicoativos), consumida tradicionalmente pelos povos indígenas da Amazónia para efeitos rituais e de cura física e espiritual. No início do século XX um seringueiro, Irineu Serra, depois de tomar ayahuasca na região do Acre, teve uma série de revelações marianas e fundou a Igreja do Santo Daime. Mais tarde, no final dos anos 1950, um outro seringueiro na Amazónia, José Gabriel Costa, conheceu a bebida e fundou a igreja União do Vegetal. Em ambos os cultos se inclui a toma de ayahuasca durante as cerimónias. Quer a Igreja do Santo Daime quer a União do Vegetal estão presentes, há vários anos, em Portugal e merecem que o seu estatuto seja considerado com a maior seriedade ao abrigo da liberdade religiosa. Foi precisamente um argumento de liberdade religiosa que fez que o Supreme Court norte-americano reconhecesse a licitude do uso da planta pela UDV, num caso em 2006, sem votos contra. A UDV foi defendida por Nancy Hollander, uma das mais famosas advogadas de direitos fundamentais, que mais tarde defendeu, igualmente com sucesso, Chelsea Manning. Mas quem também advogou no sentido da legalidade da ayahuasca e do seu consumo, junto do Supreme Court, foi num amicus brief a Conferência Episcopal Norte-Americana, não propriamente uma organização fruto da contracultura de Woodstock. A questão jurídica tem alguma complexidade na medida em que nem a bebida ayahuasca nem qualquer das duas plantas são referidas nos tratados internacionais das Nações Unidas sobre substâncias controladas, nem proibidas nas legislações nacionais de droga, mas o DMT, presente na planta Psychotria viridis, é uma substância controlada. Para além do uso religioso referido e do uso tradicional por povos indígenas, há um interesse cada vez maior seja por movimentos neoxamânicos ou por muitas pessoas não integradas em qualquer movimento mas que procuram respostas e curas.
E é dessas experiências que toda a gente que conheço que tomou ayahuasca fala como uma verdade quase absoluta, mas sincera e não impositiva. Como superaram o trauma de abusos, da perda de um ente querido, de suicídios na família, de como perceberam o melhor caminho a tomar na vida. O que mais impressiona, em relatos muito díspares, de pessoas muito díspares, é a certeza do que viram dentro de si, da resolução de um problema, de uma visão sobre o mundo, a relação com a natureza. Dizem, com candura: uma coisa é achares que te amam, outra coisa é saberes que te amam como sabes que estás aqui sentado; em seis horas de uma experiência fiz mais caminho do que em seis anos de psicoterapia; estive sentado com o meu pai que se tinha suicidado, falámos, depois larguei o álcool em que tinha caído desde a sua morte.
Tal como outras substâncias, a ayahuasca acaba perdida num sistema proibicionista caduco, que causou mais mal do que bem, mais morte do que vida. Mas sobretudo, e para o que aqui importa, impediu que substâncias com comprovados efeitos terapêuticos em saúde mental fossem deixados décadas na gaveta, enquanto as depressões cresciam, as prescrições de opiáceos e os seus efeitos se transformavam numa das mais sinistras epidemias do nosso século. As coisas estão a mudar, há hoje ensaios clínicos com MDMA (ecstasy), com psilocibina (cogumelos mágicos, cujo consumo foi descriminalizado no início do mês na cidade de Denver, no Colorado), em condições como trauma, stress pós-traumático e dependências. É o renascimento dos psicadélicos, que tinha aflorado aqui no texto "Affaires de verão" em agosto de 2018, e que pode ser visto de forma muito profunda e desenvolvida na investigação do professor Pedro Teixeira para o Público de fevereiro. Renascimento também em Portugal, porque já em 1964 na Faculdade de Medicina de Lisboa tinham sido feitos testes em humanos com cogumelos mágicos por Emílio Salgueiro, que publicou "A Psicose Experimental pela Psilocibina".
Dizem que a experiência de ayahuasca é forte. Mas falar com esta gente toda é também forte. É isto tudo que espero encontrar, daqui por umas horas, em Girona, na World Ayahuasca Conference 2019, onde participarei em duas mesas-redondas com advogados, investigadores, ativistas, responsáveis de organismos públicos de todo o mundo, sobre como encontrar um caminho seguro e regulado entre estas plantas e as pessoas que podem ser por elas ajudadas.