Affaires de verão
Dentro de horas falarei em Frankfurt aos líderes mundiais da indústria da canábis. Ora aqui está uma frase que nunca tinha esperado poder escrever, e que se a tivesse lido a qualquer outra pessoa tinha pensado e o que é que isso me interessa. Mas como é verão espero que os leitores tenham a mente entorpecida do descanso do corpo e do regalo da vista que lhes proporcionou a praia e a piscina a que se submeteram pelo que me é dado ver pelo instagrão, esse deus do corpo depilado a laser, e que possam até nem ler este texto e passem já para o inquérito de verão onde uma qualquer celebridade vai dizer que o lugar mais exótico onde ainda não fez amor mas gostava de fazer era numa ilha secreta com o seu ou sua mais-que-tudo (havia tanto a dizer sobre isto) e que o seu maior defeito é, sinceramente, a sinceridade, como aliás se vê pela resposta anterior, pelo menos pela primeira parte. Depois, prato preferido (sushi), filme preferido (Shawshank Redemption), cidade (Barcelona, Lisboa ou Miami) e livro preferido (50 Sombras de Grey) e livro que gostava de ter escrito.
Nos inquéritos de verão nunca respondi sobre o livro que gostava de ter escrito por três razões: porque não tinha uma resposta para dar, porque a resposta que tinha não a podia dar e porque nunca me fizeram um inquérito de verão. Mas agora que já tenho a resposta, e se um dia me fizerem um inquérito, já não há o risco de confessar que o livro que eu gostava de ter escrito não era bem um livro, era toda uma obra, a obra de Paulo Coelho. Nunca li uma página, mas pouco interessa, porque o que conta são os milhões de pessoas felizes e a felicidade da pessoa com os milhões na conta. Andam normalmente de mãos dadas estas duas coisas, a do sucesso de massas e o sucesso nas massas, que o digam a Cristina Ferreira e o Miguel Sousa Tavares, transferências deste verão para a próxima época.
Mas agora descobri o livro que gostava de ter escrito, porque tive de o reler. É um livro menos famoso de um autor mais do que menos famoso. Michael Pollan, jornalista, investigador, escritor, é sobretudo conhecido pelos livros sobre alimentação (The Omnivore"s Dilemma, ou Food Rules). O livro que gostava de ter sido eu a escrever publicou-o ele em 2001 e chama-se The Botany of Desire: A Plant's-Eye View of the World. Nele, Michael aborda quatro plantas e quatro desejos humanos: a batata e o nosso desejo de controlo, a túlipa e o nosso desejo de beleza, a maçã e o nosso desejo de doçura e, por fim, a canábis e o nosso desejo de intoxicação. E como as quatro plantas e o homem coevoluíram, como o homem as domesticou porque precisava de todas elas para chegar onde chegou.
Voltei ao livro por causa da tal palestra, embora desconfie que a audiência esteja mais interessada em ouvir-me sobre as leis que regulam a planta no mundo e em Portugal, e como vão converter o que lhes diga em patacos, do que sobre a poética da redescoberta de uma planta pelas leis que a diabolizaram. Falarei das leis, sim, mas vão ter de me ouvir sobre coisas menos venais, vão. O título da palestra é, traduzindo, Portugal e a Canábis Medicinal: o Reacender de Um Affaire com Quinhentos Anos? Tirando a piada fácil do reacender, é também relembrar que foi Garcia de Orta o tal médico judeu sefardita de Castelo de Vide, que trouxe o conhecimento dos usos da planta para o Ocidente, e também relembrar que os portugueses foram instrumentais no levar da planta de um ao outro lado do Atlântico. E que agora estamos no pelotão da frente das nações que percebem a importância do acesso a canábis para fins medicinais.
Também é sobre redescobertas o mais recente livro de Michael Pollan. Saído neste ano, How to Change Your Mind : What the New Science of Psychedelics Teaches Us about Consciousness, Dying, Addiction, Depression, and Transcendence é um livro que ficará na história e que assinala a revolução silenciosa que está a ocorrer no mundo da medicina e da farmacologia com a redescoberta das drogas psicadélicas. Arredadas dos circuitos normais de investigação nos anos 1960 e 70, os últimos dez anos assistiram ao renascimento dos psicadélicos, com cada vez mais testes clínicos a decorrer pelo mundo, até em Portugal. Está por exemplo demonstrada a eficácia e a segurança de alguns enteogénicos, em especial da psilocibina, no tratamento da depressão resistente à medicação. A psilocibina foi isolada em 1959 por Albert Hofmann (o famoso químico suíço que ao serviço da Sandoz, hoje parte da Novartis, também descobriu o LSD), e é uma componente natural de vários cogumelos alucinogénicos.
O fim da pesquisa científica com substâncias psicadélicas, como efeito colateral da war on drugs, está finalmente a ser revertido, e se os resultados continuarem a confirmar-se, dentro de poucos anos, os pacientes poderão ter acesso a novos (velhos) medicamentos para velhas (novas) doenças. Culturalmente, o mais interessante aqui é assinalar que a ciência pura foi obrigada a juntar-se aos estudos da consciência e avançar no estudo de substâncias que atuam sobre a consciência em si (ou de si?), coisa sobre que (se) sabe tão pouco. Também por isso as substâncias psicadélicas estão a ser estudadas nas situações de fim de vida, e no efeito que têm, mesmo que aplicadas uma só vez, na tranquilização e no apaziguamento da pessoa a quem resta pouco tempo aqui. Mas vou fazer o check in online, que isto já parece um livro do Paulo Coelho.