Aventuras curtas e longas com ecrãs e muita música
Para o encerramento da 30ª edição do Curtas Vila do Conde (hoje à noite, a partir das 21.15 horas, no Teatro Municipal) foi escolhido o filme Fogo Fátuo, de João Pedro Rodrigues, um subtil exercício de comédia, a meio caminho entre o conto sexual e a parábola política (que, em maio, teve a estreia mundial em Cannes, na Quinzena dos Realizadores).
Por curiosa ironia - mas também em nome da mais básica objetividade -, vale a pena referir que Fogo Fátuo é um daqueles objetos capaz de desafiar a própria fronteira tradicional entre curtas e longas metragens. Em primeiro lugar, porque se trata, formalmente, de uma longa (tem mais de 60 minutos). Depois, porque a sua contida duração (apenas 67 minutos) celebra uma "brevidade" própria do universo dos filmes mais "pequenos".
O que está em jogo, entenda-se, não é uma mera questão de medidas. Acontece que o Curtas sempre foi - e continua a ser - um festival capaz de levar o seu público a observar e, em última instância, questionar as matrizes correntes do universo cinematográfico. E as hipóteses de criatividade que nele se manifestam.
Há, por estes tempos, um vírus narrativo cuja responsabilidade não pertence, obviamente, a Vila do Conde, mas que se manifesta de forma insidiosa no campo específico dos festivais. Em parte como resultado de uma cultura normativa de raiz televisiva, há filmes que tendem a viver (e, por vezes, a serem consagrados) através da importância que é atribuída, ou que eles próprios atribuem, ao seu "tema". Lembremos a última edição de Cannes: na ausência de ideias de cinema, o realizador sueco Ruben Östlund conseguiu, com Triangle of Sadness, a proeza de encenar um grupo de personagens a lidar com vómitos e excrementos (a descrição só peca por defeito) e desse modo ser consagrado pelo seu "tema". A saber: a "denúncia da burguesia". Um júri de personalidades obviamente respeitáveis achou mesmo por bem entregar-lhe a Palma de Ouro, esquecendo David Cronenberg, Jerzy Skolimowski, Saeed Roustaee, etc., etc., etc.
Eis um sintoma desse vírus visto em Vila do Conde: Brutalia, Dias de Labor, produção Grécia/Bélgica assinada por Manolis Mavris. Que acontece? Descobrimos uma sociedade de mulheres, em uniformes militares, todas com o mesmo corte de cabelo, que funcionam como uma colmeia... A sugestão "simbólica" é sublinhada cena a cena por uma voz off "explicativa": estamos perante a "denúncia" de uma oligarquia elaborada contra o "feminino". Que tal banalidade narrativa seja assumida como uma celebração (?) do universo das mulheres é tanto mais desconcertante quanto não se vislumbra um qualquer gesto de cinema, minimamente inventivo.
Não se trata de avaliar o Curtas em função de uma contabilidade de "bons" e "maus" filmes - até porque cada filme suscita, salutarmente, pontos de vista diversos, por vezes inconciliáveis. Trata-se, isso sim, de sublinhar de novo as qualidades de um festival que sempre soube cultivar a arte (difícil) de dar conta das convulsões do mundo através das convulsões do próprio cinema.
Exemplo modelar, dos mais interessantes que pude ver em Vila do Conde, será Happy New Year, Jim, do italiano Andrea Gatopoulos (que, curiosamente, também passou este ano na Quinzena dos Realizadores). Em cena está o diálogo de dois amigos, Jim e Morten, ligados por um jogo de computador, ao mesmo tempo que o segundo regressa à sua obsessão de discutir o valor real (ou o irrealismo) da respetiva ligação virtual...
Claro que vogamos por terrenos conhecidos da história do cinema (e da literatura), de Stanley Kubrick a Steven Spielberg, passando por Chris Marker: que acontece (ou que se perdeu) através dos computadores que usamos? O certo é que Gatopoulos introduz um dado simples, fascinante e perturbante: o que vemos no ecrã do cinema corresponde, afinal, ao ecrã caseiro de Morten, como se assistissemos a um plano subjetivo (com 9 minutos de duração) de alguém que já não sabe se ainda vê e pensa, ou se se transformou num mero terminal da agitação das máquinas.
Mesmo resistindo à noção corrente (é o meu caso), segundo a qual a animação cinematográfica está a conseguir tratar de assuntos que escapam aos filmes "normais", não deixa de ser interessante sublinhar que, por vezes, essa mesma animação tem também a capacidade de relançar a questão primitiva da identidade do olhar cinematográfico - afinal de contas, que mundo vemos no mundo que se organiza como acontecimento de um ecrã?
Nessa perspetiva, outro exemplo que vale a pena reter é Los Huesos/Os Ossos, 14 minutos de animação em stop motion. Produção chilena com assinatura da dupla Cristóbal León/Joaquín Cociña, trata-se de um calculado exercício de ficção "documental".
Assim, existe ou existiria um exercício pioneiro de stop motion, feito no Chile em 1901 e descoberto em 2021: a sua história centra-se numa personagem feminina que pratica rituais (com ossos) para libertar o Chile da sua herança feudal. De uma estranheza tão inclassificável quanto envolvente, este é um caso realmente invulgar de um artifício que transporta as mais descarnadas (é o termo...) sugestões realistas. Sem esquecer uma vibração dramática sublinhada pela música original do violinista Tim Fain, colaborador regular de Philip Glass.
Enfim, tendo em conta as componentes musicais do Curtas, importa anotar ainda a passagem de uma maravilhosa obra-prima, muito pouco divulgada: Songs for Drella, de Ed Lachman, é o registo das canções do álbum homónimo de John Cale e Lou Reed, revisitando as memórias do seu mentor Andy Warhol (falecido em 1987, contava 58 anos). O filme é do mesmo ano do álbum, 1990, e foi recentemente restaurado em 4K - o que está longe de ser indiferente, já que Lachman é um dos mais brilhantes diretores de fotografia do último meio século do cinema americano (lembremos apenas as suas colaborações com Todd Haynes, incluindo Carol, de 2015).
Numa sala sem público, Cale e Reed cumprem uma verdadeira cerimónia musical, com o seu quê de sagrado: o cinema amplia e eterniza o acontecimento.
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