É raro podermos ouvir um chefe da diplomacia a falar abertamente de "pressões" e de erros dos seus parceiros. Nesta conversa, que foi longa, no seu gabinete no Palácio das Necessidades, Augusto Santos Silva não fugiu a nenhuma pergunta. Reconhece a importância de avaliarmos o significado de uma alteração profunda da forma como a China quer ser vista no mundo. "Não me admira que a China queira projetar uma influência de ator global, não reduzida apenas à dimensão económica. Para além de ser fábrica do mundo quer ser também um dos grandes poderes do mundo." Como tudo isso se relaciona com a importância do investimento chinês em Portugal (na EDP, na REN, no BCP, por exemplo) ou com o desacordo constante na União Europeia sobre a política de direitos humanos de Pequim, são alguns dos pontos mais interessantes desta entrevista. Além das "pressões" que admite existirem de Washington para que a China seja vista como um "inimigo", Santos Silva alerta para os riscos de um conflito comercial..Que leitura faz da presença da China em vários setores da economia europeia? É o resultado da política de abertura da economia chinesa, ou tem outra leitura geopolítica? Não consigo distinguir totalmente a geoeconomia da geopolítica. O que acontece, em particular com esta liderança do presidente Xi Jinping, é que a China não se afirma apenas como um poder económico, como também procura afirmar essa influência global num campo mais propriamente geopolítico e geoestratégico. Isso é uma novidade à qual a União Europeia ainda está em processo de adaptação. Para além de ser a fábrica do mundo, quer ser também um dos grandes poderes do mundo. O problema não está aí. O problema é saber se esse processo de afirmação da China, como um dos grandes poderes do mundo, se faz no respeito por aquilo que na União Europeia dizemos ser a ordem internacional baseada em regras. Esse é o ponto..E qual é a sua opinião? Há áreas em que a China parece estar comprometida com as grandes agendas multilaterais, designadamente no combate às alterações climáticas e com o respeito pelo Direito Internacional, há outras áreas em que, na nossa opinião, a China desafia essa ideia de uma ordem internacional baseada em regras. Por exemplo, na forma agressiva como tem gerido a questão do chamado mar do Sul da China. Portanto, é por isto que a União Europeia, e bem, e Portugal dentro da União Europeia, temos tido, nós próprios, um processo de adaptação que tem vários planos, de que podemos falar mas que, na minha opinião, está bem expresso na comunicação da alta representante sobre a China, de março passado, quando essa comunicação define a China em quatro componentes essenciais. Diz que a China em relação à União Europeia é, ao mesmo tempo, um parceiro cooperativo, designadamente na agenda do clima, na agenda do desenvolvimento sustentável; nas Nações Unidos é um parceiro negocial, isto é, um parceiro com o qual negociamos, explorando os interesses comuns e procurando cada um defender os seus próprios interesses; é, em terceiro lugar, um concorrente económico, por exemplo em África - isso parece evidente, a Europa quando desinvestiu em África a China aproveitou esse espaço e agora a Europa está a procurar reconquistar esse espaço em África; e é um rival sistémico. Um rival sistémico quanto a modelos de governação. Para nós, a democracia é o regime - não só é o regime mais favorável como é o único que entendemos ser adequado - e a China não tem essa conceção. Mas às vezes comete-se um erro que é reduzirmos os documentos a fórmulas. A Comissão Europeia - e Portugal com ela - nunca disse que agora a China passou a ser um rival sistémico..A União Europeia não deixou que países como Portugal e Grécia fossem um alvo apetecível do investimento chinês e quando esse investimento começou a concentrar-se também em França e na Alemanha começou a ser visto de outra maneira? Não me parece. Em primeiro lugar, vamos aos factos. Nós não temos capital chinês na EDP ou capital chinês na REN ou capital chinês no BCP porque a União Europeia nos tenha deixado ter. Nós temos capital chinês na EDP e na REN porque no processo de privatização dessas duas empresas a China - ou melhor, empresas chinesas - apresentou as melhores propostas. Mas de longe. Num processo de seleção que ninguém contestou. E, depois, a Fosun entrou no capital do BCP por lógicas de mercado, pura e simples. E comprou a Fidelidade, lógicas de mercado pura e simples..Mas houve, tanto em Portugal como na Grécia, uma articulação dos governos da altura com as instituições europeias quanto às áreas a privatizar... Sim, mas o meu ponto é outro. Não era ministro nessa altura, era outro governo, mas era um observador atento e sei que o anterior governo não infringiu nenhuma regra europeia na forma como conduziu o processo de privatização, de que resultou a entrada de capital chinês. Que, aliás, tem sido um fator de estabilidade na estrutura acionista, quer numa quer noutra empresa..Outra análise que temos ouvido, e que vem na sequência do que me está a dizer, é que durante uma fase de escassez de investimento, público e privado, na crise, o capital chinês foi - não sei se gosta da expressão - salvador, ou pelo menos muito útil. Não. Nem a presença de investimento chinês em Portugal é muito significativa em comparação europeia. Nem é verdade que Portugal seja o destino por excelência do investimento chinês na Europa, ou o parceiro comercial principal da China na Europa, nem é verdade que, comparado com as outras origens de investimento, a China seja o principal, ou esteja entre os dois ou três principais. Esses locais principais continuam a ser a França, o Reino Unido, a Alemanha, os Estados Unidos, a própria Espanha. Isto é, os nossos parceiros económicos mais tradicionais. E, portanto, é preciso pôr as coisas no seu devido lugar..Portugal privatizou e vendeu a uma empresa estatal chinesa a Rede Elétrica Nacional mas, na Alemanha, essa mesma tentativa foi impedida por razões de soberania nacional. Portanto, há aqui um duplo critério ou acha que não? Em primeiro lugar, entendo que os monopólios naturais não devem ser privados. E um dos casos evidentes é a rede de distribuição elétrica nacional. E, portanto, não privatizaria a REN. Agora, sei, porque estava no governo nessa altura, das condições muito difíceis em que foi negociado o resgate a Portugal e as imposições que sofremos. Em condições normais não creio que qualquer Governo português privatizasse a REN, mas, ela foi privatizada. Em segundo lugar, quero chamar atenção para que a State Grid, que é a empresa chinesa que está aqui em causa, tem 25% do capital da REN. A afirmação segundo a qual a REN é chinesa é falsa..A Europa não tem uma política coerente, porque a China comprou parte da rede elétrica em Portugal e na Itália, mas foi impedida de o fazer na Alemanha... Sim, mas a minha pergunta é a contrária. Vejo, em alguns países da União Europeia, sinais de que já estão aqui e ali a tomar atitudes do ponto de vista da política externa, ou a tomar atitudes do ponto de vista da formação - no interior da União Europeia - da nossa política externa comum, em função do que parece ser a avaliação que fazem das consequências dos interesses chineses nos seus países. Mas quero dizer que Portugal não pertence a esse grupo de países..Está a falar de quem? Estou a falar, por exemplo, da forma como alguns países do Leste da Europa, quando nós discutimos na União Europeia a nossa posição no Conselho de Direitos Humanos, nas Nações Unidas, em relação à China, vão dando sinais de algum distanciamento daquela que é a linha tradicional da União Europeia no que diz respeito aos direitos humanos..Nesse caso podemos concluir que há de facto uma influência política que advém do poder económico chinês? Não sei. O que sei é que Portugal tem mantido total independência na formação da sua política externa. E não tem sofrido nenhuma pressão da China por causa disso. Ainda agora subscrevemos, com vários outros países europeus, um apelo - que entregámos no Conselho de Direitos Humanos - dirigido às autoridades chinesas para o respeito dos direitos humanos, em particular no caso dos uigures. Portanto, eu não sinto que haja qualquer pressão do lado da China como não sinto que haja pressão do lado da Rússia. Porque esses países conhecem bem qual é a posição portuguesa. Nós somos membros da União Europeia, somos membros da NATO. Como costumo dizer, somos parceiros mas não somos aliados, nem da Rússia nem da China, nem da África do Sul. Os nossos aliados são europeus, os membros da NATO e, naturalmente, os países de língua portuguesa..Mas tem sentido pressão dos Estados Unidos sobre a política face à China? Nomeadamente na questão da Huawei? Tenho sentido, na medida em que Portugal é membro da União Europeia..Porque tem havido pressão direta sobre vários governos europeus? Designadamente aqueles que vão muito mais à frente do que nós no processo de 5G e que já realizaram leilões, não colocando nenhum entrave à participação indireta de capital chinês, por exemplo, a Alemanha. Mas, mais uma vez aí, acho que nós reagimos bem enquanto União Europeia. O que dizemos é que não contem connosco para introduzir elementos de natureza mercantilista no comércio internacional. Nós europeus somos a favor do desenvolvimento do comércio internacional e entendemos que o comércio internacional é um jogo de soma positiva. E não um jogo de soma nula. Aí temos, neste momento, uma divergência com os nossos amigos norte-americanos, que entendem o comércio internacional como um jogo de soma nula. Para eles ganharem, outros têm de perder. A história mostra que o comércio internacional é um jogo em que todos podem ganhar. Em segundo lugar dizemos: não contem connosco para estabelecer barreiras, por razões administrativas, em função apenas da nacionalidade. Dizer que o país X está vetado, o país Y não está vetado, ou o país Z é favorecido. E, em terceiro lugar, dizemos que a rede 5G é muitíssimo importante, mas põe problemas muito delicados de segurança. E esses problemas de segurança têm de ser enfrentados antes de decisões que depois sejam irreversíveis. Como sabe, os Estados Unidos seguiram outro caminho. Decidiram que a China colocava ipso facto problemas de segurança.Como é que avalia o conflito comercial que parece adivinhar-se entre os Estados Unidos e a China? E qual o efeito disso para a União Europeia? Como sabe, para nós europeus, esse é um dos grandes riscos que o mundo corre. Um cenário de guerra comercial seria um cenário que traria efeitos muito negativos sobre o crescimento económico mundial e que tem hipóteses de um spill over também em matéria geopolítica. O comércio internacional deve ser regulado e livre. Para nós, europeus, o comércio internacional não é apenas formalmente livre, em que os ricos ganham sempre e os pobres perdem sempre. Nós, na União Europeia, falamos de comércio internacional justo, regulado e livre. Portanto, para nós, a defensa do multilateralismo e a defesa do comércio internacional encaixam uma na outra. E, como sabe, neste momento há uma certa divergência ou dissonância entre a posição europeia e a posição da administração americana. Que aliás julgo ser circunstancial e passageira. Como sabe, também, a posição americana oscila. E portanto temos de ver isto com alguma frieza..Indiretamente, esse conflito afeta-nos, até porque a interligação das economias da Europa e dos EUA é maior... Sim, mas no outro cenário nós também perderemos. Basta fazer raciocínios deste tipo. Qual é o maior parceiro comercial dentro da Europa da China? É a Alemanha. Qual é o motor económico da zona euro? É a Alemanha. Qual é o peso da zona euro no conjunto das exportações portuguesas? É praticamente três quartos. É fácil perceber que não ficaremos imunes..Tem elogiado, até agora, a forma como a União Europeia tem lidado com este assunto. Do ponto de vista diplomático, parece haver aqui uma filigrana muito permeável à própria diplomacia chinesa, uma vez que se relaciona com a União Europeia em materiais relevantes e superestruturais, mas depois relaciona-se Estado a Estado, por grupos de Estados e de regiões, como o grupo 16+1, etc. Há aqui uma diplomacia de vários níveis que a China pode usar na sua relação com a União Europeia? É verdade. Mas é uma parte da verdade. A outra parte da verdade é que Portugal, como aliás é sua característica, tem-se distinguido por tentar fazer a ponte entre esse plano do relacionamento Estado a Estado e os princípios que presidem ao relacionamento da União Europeia com o Estado chinês. Um exemplo dessa ponte: a forma como negociámos o nosso memorando de entendimento com a China, para colaboração com a iniciativa Uma Faixa Uma Rota. Nós fomos o primeiro Estado europeu a negociar um memorando de entendimento com a China que visa expressamente que essa cooperação se faz no quadro europeu. E aliás o texto a que nós chegámos serviu depois de inspiração para outros dois Estados da Europa Ocidental que se seguiram: a Itália e o Luxemburgo. Como é que isto se concretiza? Por exemplo, o que o nosso memorando diz, e depois a declaração da cimeira de abril - entre e União Europeia e a China - repete, é que não vamos estar integrados na nova Rota da Seda. Nós queremos que a nova Rota da Seda, que é iniciativa chinesa de promoção das comunicações e das infraestruturas de transportes, se articule com a estratégia europeia de promoção das infraestruturas de transportes, aquilo a que nós chamamos de estratégia de conectividade Europa-Ásia. Aliás, a declaração da cimeira, EU-China de abril, é muito importante e infelizmente é pouco lida. Incluindo nos compromissos que as duas partes assumiram..Ouvimos, por exemplo, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros grego que vetou uma das menções à China no Relatórios dos Direitos Humanos que nos esclareceu que o fez por outra razão, porque exigia o mesmo tipo de análise para países como o Paquistão e a Arábia Saudita... Nem sempre se tem conseguido a unanimidade e, por vezes, essa unanimidade é necessária para haver posições em matéria de política externa. É uma condição para haver posições da União Europeia. Mas sempre que isso tem sucedido nós temos alinhado com os países que não se conformando com a ausência da unanimidade manifestam publicamente a sua posição. Fizemos isso no Pacto Global das Migrações, em que, para vergonha nossa, da União Europeia, não foi possível ter uma posição unânime europeia porque a Hungria e vários outros países se recusaram a assinar o pacto. Mas nós assinamos, com os outros. No último Conselho Europeu de junho, nós, também para nossa vergonha, não conseguimos chegar a acordo para calendarizar a neutralidade carbónica. E 23 ou 24 países disseram expressamente na declaração, em nota, que queriam isso - e Portugal esteve com eles. E já referi o documento apresentado por países europeus a propósito dos direitos humanos dos uigures que não foi apresentado pela União Europeia porque não houve unanimidade. Foi apresentado por países entre os quais está Portugal..Para terminar esta parte da forma como a União Europeu tem olhado, num passado recente, para o investimento chinês foi instituído também um mecanismo de avaliação dos investimentos externos. O primeiro-ministro fez uma crítica na altura... Não foi uma crítica. Nós fomos favoráveis ao mecanismo de escrutínio, pondo condições. Contribuímos para a solução que acabou por ser consensual. E essas condições são: primeiro, o poder de decisão final deve competir a cada Estado. Nós não nos esquecemos do que passamos no período da Troika. E não estamos disponíveis nem para uma lógica de sanções, nem para uma lógica de deixar as decisões nas mãos de outros. De outros que o nosso Parlamento não possa escrutinar. A não ser, naturalmente, nas políticas que já são europeias. Aí nós abdicamos. A política monetária já não é nacional. A política comercial já não é nacional. Agora, na política económica nacional, o poder de decisão final tem de ser do Estado. Porque senão corria-se o risco de poder haver uma decisão, por exemplo, desfavorável ao investimento, vamos dizer, moçambicano em Portugal, influenciado por um Estado membro da União Europeia que não quisesse que Portugal concorresse com ele na atração do investimento moçambicano. A segunda condição que nós colocamos é que, evidentemente, o mecanismo de screening tinha que ser abstrato. Não era um mecanismo para o investimento chinês. Era um mecanismo para o investimento estrangeiro - no sentido de não europeu. E, terceiro, que esse screening, que ao fim e ao cabo tem como principal componente uma obrigação de informação aos outros, devesse ser circunscrito a áreas em que não estivessem apenas presentes questões económicas. Estivessem presentes, por exemplo, também questões de segurança e de soberania nacional. As tais infraestruturas críticas..É verdade que o presidente norte-americano manifestou vontade de vir a Portugal (no final de agosto passado) e que a concessão do novo terminal de Sines, desejada por empresas chinesas, seria um dos assuntos que estaria em cima da mesa? É verdade que o Presidente português convidou o presidente Trump quando esteve em junho de 2018 nos Estados Unidos - eu acompanhei-o, portanto, testemunhei esse convite - e depois renovou, mais formalmente, esse convite, no final desse ano. É um convite que vincula Portugal e que, naturalmente, é acertado com o governo. E desde então a questão de saber qual é a melhor oportunidade para que esse convite - porque ele foi aceite pelo presidente Trump - seja concretizado é uma questão que tem ocupado as duas diplomacias. Não há nenhuma urgência nisso. Não há nenhuma questão pendente nas relações bilaterais que obrigue a essa urgência e, portanto, temos testado oportunidades, mas até agora sem que, em algum momento, se tenha posto a questão de saber qual é a agenda do encontro..Disse há pouco que a União Europeia ainda está a aprender a lidar com a nova China. Não é tarde? A China abandonou a lição de Deng Xiaoping que era apostar tudo no crescimento económico, sendo discreto em matéria geopolítica. Na minha opinião essa transição era inelutável. Nenhum país chega à dimensão económica e populacional que a China tem sem tentar fazer algo também no plano geopolítico. Não há nenhuma razão para que nós, europeus, pensemos que somos 500 milhões que têm que mandar nos restantes, neste momento, quase 7 mil milhões. E, portanto, como eu aliás tenho defendido também, a Europa tem que olhar para a Índia, para a China, para a África, para a América Latina, como parceiros muito importantes. E não é para lhes dar lições. É para ter interações entre iguais. E portanto eu tenderia a dizer que esta preocupação é recente, e eu compreendo-a. Agora, também é preciso não ter uma visão de século XIX do que são as infraestruturas críticas..Uma das grandes críticas ao investimento chinês é a falta de capacidade de escrutínio que teremos sobre a origem do crédito que permite às empresas chinesas gastarem o dinheiro que gastam e fazerem o investimento que fazem. Concorda com esta critica? Há muitas coisas no modelo económico chinês que são questionáveis. E, do meu ponto de vista, elas terão, inelutavelmente, de mudar. E muitos aspetos da política económica chinesa são muito estranhos ao mundo ocidental e muito criticáveis por um padrão europeu. Nós criticamos muito o que chamamos da diplomacia da dívida chinesa. A forma como a China atua, por vezes, em relação a países de África ou mesmo da América Latina..Aparentemente é mais benevolente do que algumas instituições europeias durante os períodos de assinatura de memorandos... Mas também exige garantias muito mais reais. A minha afirmação sobre isso é sempre a mesma. A China está em África, com o poder que está, porque a Europa abandonou África. Abandonou a quem? À China..E isso está a acontecer também a algumas regiões da Europa... Sim, também da própria Europa. Quando nós dizemos que somos parceiros não quer dizer que não sejamos o que chamamos de parceiros negociais. Cada um defendendo os seus interesses. Agora, o que eu acho é que é difícil nós contribuirmos para o crescimento económico mundial e para a ordem internacional de que gostamos de chamar de liberal, achando que o conseguimos fazer tornando a China o nosso inimigo. O nosso maior inimigo. O nosso único inimigo. Ou dizendo temos uma "guerra" económica a travar com os chineses. Não está demonstrado que isso seja melhor do que ter uma relação que, muitas vezes é tensa, mas uma relação entre iguais. E essa tem sido a estratégia seguida pela União Europeia e Portugal revê-se inteiramente nessa estratégia, até porque tem contribuído para ela..Portugal fez, recentemente, uma emissão de dívida pública em moeda chinesa. Isso também tem a ver com aquilo que dizia há pouco, que é a necessidade da China estabilizar a sua moeda, tornar-se menos dependente do dólar... E nós diversificarmos os nossos mercados da dívida. É um daqueles casos em que Portugal e China se portaram como parceiros negociais..E foi útil para ambos, desse ponto de vista? Do nosso ponto de vista sim. Foi útil para nós termos sido o primeiro país da zona Euro a fazê-lo. Foi útil para nós termos feito na dimensão em que fizemos e foi útil para nos termos testado se era possível, ou não. E nestes três critérios as coisas correram bem. Há um ponto que nós devemos sempre ter em atenção. É que o primeiro europeu a chegar à China por via marítima - em 1523, se não me falha a memória - foi o navegador português Jorge Álvares. Há muitas áreas em que nós fomos os primeiros europeus a chegar à China. Nós somos dos poucos europeus que nunca tiveram uma relação de hostilidade com a China ao longo destes anos. Mesmo no caso de Macau e mesmo durante o Estado Novo, a China e as Nações Unidas nunca consideram Macau como um território colonial. Macau foi sempre um território chinês sob administração portuguesa. Nós fomos o último país europeu a sair da responsabilidade de administração da China. Num acordo que tem sido escrupulosamente cumprido. Há hoje mais pessoas a falar português em Macau que havia no Estado Novo. Há mais alunos a aprender português em Macau do que havia antes do Estado Novo. Nós temos 136 mil portugueses registados nos nossos consulados na China. Isso não é um capital?.E não pode ser um problema também? Pergunto se teme que algo de semelhante ao que está a passar em Hong Kong se venha a passar em Macau, por um lado, e, havendo 136 mil cidadãos com nacionalidade portuguesa, se isso não é um risco? Não. Em primeiro lugar porque essas 136 mil pessoas estão plenamente integradas e têm todos os direitos que lhes assistem enquanto cidadãos portugueses. Em segundo lugar, porque, até agora, a lei base tem sido cumprida. Os termos do acordo têm sido escrupulosamente respeitados por ambas as partes. E, em terceiro lugar, porque julgo que as situações sociais em Macau e em Hong Kong são muito diferentes. Nós temos acompanhado, naquela lógica que nos caracteriza, que é sempre uma lógica não confrontacional. Em vez de querermos dar lições de moral aos outros, o que nós fazemos é falar com os outros e interagirmos com eles. Para dar um exemplo, no caso de Macau, eu estou lá há 3 anos e 9 meses neste ministério, já participei em três reuniões da Comissão mista Portugal-Macau. Duas em Lisboa e uma em Macau. E, portanto, isso quer dizer que a proximidade é cultivada. O que facilita bastante as coisas quando há problemas.