Audrey Hepburn. O triunfo do encanto
Apesar da sua elegante silhueta, irradiava saúde como um anúncio de cereais de pequeno-almoço, uma cara lavada de sabão e limão, umas bochechas afogueadas de um rubro-rosa. Tinha uma boca grande, um nariz empinado. (...) Era um rosto para lá da infância, mas para cá de pertencer a uma mulher feita. Pensei que podia ter à vontade entre dezasseis e trinta anos." Se a descrição que Truman Capote faz de Holly Golightly, a personagem central da sua novela Breakfast at Tiffany"s (que, acrescenta ele, se poderia confundir com um "modelo fotográfico"), não é uma descrição quase perfeita da Audrey Hepburn que vemos no filme homónimo de Blake Edwards, então o que é? Até o mais distraído dos espectadores seria capaz de perceber a afinidade entre as palavras de Capote e a compleição de Audrey. E, no entanto, leia-se o que o autor americano disse depois a propósito da escolha da atriz: "Holly Golightly era real - uma personagem dura, nada do tipo Audrey Hepburn. A Marilyn Monroe foi a minha primeira escolha. Achei que seria perfeita para o papel. A Holly tinha de ter algo comovente - inacabado. A Marilyn tinha isso. Mas a Paramount enganou-se e deu o papel à Audrey Hepburn." A nossa resposta possível a tal blasfémia: senhor Truman, with all due respect, vá dar uma curva.
Seis décadas passadas sobre a estreia de Breakfast at Tiffany"s - assinala-se no dia 6 de outubro -, que em português recebeu o título Boneca de Luxo, Audrey permanece como um símbolo feminino intemporal, uma presença diáfana na Quinta Avenida às cinco da manhã, em frente à montra da joalharia Tiffany"s, a trincar um croissant e trazendo sobre o corpo delgado um vestido preto com uma gargantilha de pérolas (o vestido, considerado uma das peças de roupa icónicas do século XX, foi vendido em 2006 pela Christie"s por 920 mil dólares, verba usada para a construção de uma escola em Calcutá para crianças pobres). Este plano de abertura do filme de Blake Edwards bastaria para derrubar o mau julgamento de Capote, mas afinal está tudo nos seus próprios argumentos mal calculados em relação ao alvo: Audrey faz de Holly uma personagem real, comovente, inacabada, sim, e, a envolver tudo isto, encantadora. Não é que se justifique alimentar aqui qualquer comparação entre Audrey e Monroe, mas como respondeu Hepburn à proposta de um contrato lucrativo para publicitar a Tiffany"s: "A minha imagem nunca será a de Miss Diamonds." Ao passo que Marilyn Monroe cantou com convicção, em Os Homens Preferem as Loiras, "diamonds are a girl"s best friend." Dito de outra forma: a Holly que o cinema registou é mais modelo Givenchy do que joias, mais elegância, leveza e melancolia do que sensualidade materialista.
Quando Audrey Hepburn aceitou o papel já tinha sido princesa em Roman Holiday (1953), de William Wyler, que lhe valeu um Óscar, já tinha sofrido a indecisão do amor entre Humphrey Bogart e William Holden em Sabrina (1954), de Billy Wilder, e dançado com Fred Astaire em Paris, no musical Funny Face (1957), de Stanley Donen. Ser Holly Golightly significou um salto definitivo para a eternidade, numa comédia romântica que jogava com um contexto pouco típico das comédias românticas, desde logo tendo como protagonista uma acompanhante de luxo que cobra 50 dólares para "ir ao toilette". Não há muito mais que possa chocar nos diálogos de Breakfast at Tiffany"s, ou que coloque o espectador perante a consciência de que Holly é uma prostituta. Isso deve-se, sem dúvida, à adaptação hollywoodiana do livro amargo de Truman Capote. Onde o autor refletiu sobre uma alma perdida, Blake Edwards, com a ajuda do argumentista George Axelrod (que curiosamente também colaborara na escrita de O Pecado Mora ao Lado, de Wilder, com Marilyn Monroe), filmou tão-só uma alma que acaba por encontrar outra, na esperança de um final feliz. E esse acontece num beco de Nova Iorque, à chuva, com um gato sem nome a testemunhar o beijo da pertença mútua que é o amor.
A aparente ligeireza de Breakfast at Tiffany"s pode apressar a ideia de que o filme não deixou espaço para uma certa angústia dentro do conto de fadas. Mas a verdade é que Audrey assegura as nuances menos óbvias, enquanto Edwards, como bom realizador de comédias, se preocupou com os aspetos mais burlescos e distrativos para a censura - entre os quais, a personagem caricatural, e hoje repreensível, do japonês Mr. Yunioshi, interpretado por Mickey Rooney.
Inicialmente insegura, a atriz que tinha sido mãe há pouco tempo e que não se imaginava a cantar depois do musical com Astaire, ofereceu ao cinema um dos mais belos momentos acústicos de que há memória. A melodia terna de Henry Mancini cola-se então a outra imagem icónica de Breakfast at Tiffany"s, que o biógrafo Donald Spoto colocou em palavras justíssimas: "Audrey Hepburn sentada na sua janela aberta a tocar guitarra e a cantar Moon River no seu mezzo experimental e tristonho é talvez a mais emblemática do feitiço que ela lançou a uma legião de espectadores, então e mais tarde. Sem pretensão nem poses, ela parecia sugerir através da música uma fusão de reminiscência, perda e saudade que nem mesmo Holly consegue perceber. De facto, não ouvimos Holly a cantar: trata-se de Audrey e é a sua canção, transmitida diretamente da sua personalidade introspetiva." Também por isto, não devemos pensar no filme como uma simples comédia ao sabor das convenções de Hollywood. De resto, Audrey teve de se bater para que a canção não fosse retirada pelos produtores. "Só por cima do meu cadáver!", disse, quando os estúdios mostraram a sua presunção editorial.
Portanto, uma canção, um gato chamado "Gato" - reflexo do sentimento de vazio de identidade da protagonista - e a boia de salvação romântica que é o escritor do apartamento de cima (George Peppard). Breakfast at Tiffany"s mune-se de doçura em cada um destes pormenores, mas é a ela que se deve o essencial. O verdadeiro encanto vem da mulher que pregou uma rasteira à interpretação mundana do sex appeal com a sua silhueta frágil, cheia de classe e sofisticação, coroada por um rosto onde se misturam as mais delicadas linhas clássicas e uma frescura moderna. Filha de baronesa, formada pelas melhores professoras de ballet, e com uma afetuosidade desconcertante para o seu nível de educação, Audrey tinha o charme de quem se move na cidade como peixe na água, enquanto poderia acarinhar um passado - o da personagem - que ficou no Texas rural. Ela foi tudo o que Truman Capote imaginou para a sua Holly Golightly, sem saber.
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