146 homens vítimas de abuso sexual só pediram ajuda 20 a 30 anos mais tarde

A associação "Quebrar o Silêncio" ajudou, em dois anos, 146 homens vítimas de abusos sexuais como "Pedro", que foi abusado aos oito anos por um desconhecido e só recentemente ganhou consciência do que aconteceu e percebeu que não está sozinho.
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"Pedro" é um dos 18 casos de homens que pediram ajuda à "Quebrar o Silêncio" e que, depois de acompanhamento psicológico e terapia de grupo, tiveram alta no ano passado.

Recorreu à associação "por desespero", numa altura da vida em que estava "num caos" e sentia-se "num beco sem saída". Depois de meses "em que não conseguia sair de um estado especialmente duro" e quando começava a pensar em "soluções extremas", dá "um grito de ajuda" e decide contar tudo à família mais próxima.

"Estava num estado tão debilitado que, pensava eu, pior não haveria de ficar", contou, em declarações à Lusa.

"Pedro" foi vítima de abuso sexual quando tinha oito anos e, contrariamente à maior parte dos casos, em que a agressão acontece na família ou por alguém próximo, o agressor foi um homem desconhecido.

"Foi nas férias de verão em que, não havendo uma aula de ténis que tinha nessa manhã, fiquei à espera dos meus pais. Estava num complexo desportivo, com várias pessoas por perto, mas aquele homem levou-me para um local isolado e foi aí que aconteceu. Com apenas oito anos não entendi na altura sequer o que me tinha acontecido, apenas que se tratava de algo de muito errado. Levei anos a culpabilizar-me pelo sucedido", recordou.

O abusador disse-lhe para não contar a ninguém e "Pedro" guardou esse segredo durante 15 anos, até conseguir desabafar com uma amiga. Tornou-se uma criança desconfiada em relação aos adultos e "se os primeiros anos após o sucedido foram de confusão e ignorância", quando chegou a fase da adolescência, "os sentimentos transformaram-se muitas vezes em vergonha e raiva".

"Fui também integrado num grupo de ajuda, com outros homens sobreviventes. Foi nessas sessões que ganhei consciência de que, efetivamente, não estava sozinho", relatou.

Essa tomada de consciência é um dos objetivos da campanha que a "Quebrar o Silêncio" vai divulgar hoje, para comemorar os seus dois anos de existência e de trabalho em defesa dos homens vítimas de abusos sexuais, e que tem por base os 146 homens que procuraram a ajuda da associação, um número que o presidente da "Quebrar o Silêncio" considera surpreendente por se tratar de um tema que ainda é tabu.

De acordo com Ângelo Fernandes, um em cada seis homens são vítimas de abusos antes dos 18 anos, mas só uma ínfima parte ganha coragem para denunciar e pedir ajuda.

"Ainda existe uma ideia tradicional da masculinidade, em que o homem não pode ser vítima, tem de se saber defender e resolver os seus problemas sozinho. Por outro lado, não há uma identificação com o termo vítima, ainda há uma ideia muito negativa do termo vítima, que é fraca, chorosa, frágil e não são termos fáceis de conjugar com os termos da masculinidade tradicional", explicou.

Na associação, os homens que pedem ajuda passam por um processo que os leva a "compreender que não foram eles os responsáveis pelo abuso" e são ajudados a "redirecionar a culpa para o abusador", para depois perceberem como é que o trauma afetou as suas vidas e conseguirem uma "vida livre destas consequências".

A campanha de sensibilização vai estar nas ruas de Lisboa, durante duas semanas, além de um vídeo que vai ser partilhado nas redes sociais, para mostrar aos homens vítimas, mas também à sociedade em geral, que não estão sozinhos e que devem procurar apoio.

Números da "Quebrar o Silêncio" revelam que a associação apoiou 146 homens vítimas, com uma média de idades de 34 anos, sendo que o homem mais novo tinha 18 anos e o mais velho 77 anos. Na maior parte dos 146 casos, foi a primeira vez que procuraram ajuda e fizeram-no 20 a 30 anos depois do abuso ocorrer. Fundada a 19 de janeiro de 2017, a Quebrar o Silêncio recebeu, só no primeiro ano, 84 pedidos de ajuda.

De acordo com os dados da associação, na maioria dos casos o abusador é homem e a agressão ocorreu ou no seio da família ou por alguém conhecido, sobretudo na infância ou na pré-adolescência.

Estes e outros dados vão ser hoje apresentados em Lisboa, num debate que vai incluir o testemunho dois homens que foram vítimas de abusos sexuais.

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