"Assad mantém-se no poder apenas porque ganhou com o apoio da Rússia e do Irão"
É possível dizer que o regime de Bashar al-Assad ganhou a guerra na Síria, após uma década de conflito?
Não penso que isso seja correto, pois Assad mantém-se no poder apenas porque ganhou com o apoio da Rússia e do Irão e não porque tenha sido legitimado. Portanto, não tem qualquer legitimidade, não houve eleições justas, ele só lá está por meio da força. Agora, se quisermos analisar essa força vemos que tudo na Síria está sob o controlo da ditadura de Assad - o parlamento não tem qualquer jurisdição, porque ele é o chefe do conselho de jurisdição formado por ele próprio. É uma loucura, mas é mesmo assim. Em segundo lugar, Assad foi abandonado pelo mundo inteiro, quem é que está ligado a Assad? Isso pode ser medido, podemos saber quem é que vota a favor de Assad. Se virmos todas as resoluções do Conselho dos Direitos Humanos vemos que apenas nove ou dez Estados são favoráveis a Assad e são todos ditaduras - Rússia, China, Cuba, Venezuela, Argélia... são esses os amigos e aliados de Assad. Além disso, ele também destruiu o país, destruiu o Estado. Isto é uma vitória? 96 000 cidadãos desapareceram e cerca de 15 000 morreram devido à tortura, houve centenas de milhares de sírios mortos. Isto não é uma vitória. Matar e torturar pessoas, destruir a economia, usar todos os recursos financeiros e o Tesouro do país para se manter no poder pela força, transformar a Síria no seu quintal com a população como escravos, não se pode chamar uma vitória.
Mas Assad controla melhor o país agora do que há dez anos quando a rebelião iniciada em 2011 estava talvez no seu ponto mais alto?
Não. Ele perdeu muito poder. Assad controla apenas 40% do território sírio, muitos dos seus aliados abandonaram-no ou morreram, mesmo os que o apoiavam economicamente fugiram da Síria depois de sofrerem pressões para entregarem dinheiro ou partilharem os seus lucros. Assim, Assad não consegue fornecimentos sem o apoio iraniano e russo. Calcula-se que o Irão pagou cerca de 54 mil milhões de dólares de investimento; as forças russas controlam a maior parte do exército de Assad e atacaram a população síria pelo menos 16 vezes para defender Assad. Eu penso que isto não é uma vitória, mas sim uma derrota.
Em relação aos rebeldes anti-Assad, sabe-se que ainda controlam algumas partes do país. O ISIS já não é uma força decisiva, mas a oposição formal continua a lutar e os movimentos curdos continuam a deter zonas do território ou a situação é mais o regime de Damasco a controlar o essencial da Síria, as tropas turcas a controlarem faixas do norte da Síria e as outras forças já deixaram de ser relevantes?
Sim, está correto, mas precisamos de...
O ISIS já não atua?
O ISIS já não atua, é muito residual.
Os curdos ainda controlam algumas zonas do país?
Sim. Os curdos controlam o nordeste da Síria e outras zonas apoiados por uma coligação internacional e a oposição controla outras áreas.
Portanto, o país está dividido em diferentes áreas controladas por diferentes fações?
Sim, há quatro poderes principais que controlam o país. Penso que a situação se irá manter igual, mas se compararmos, a pior zona é a controlada por Assad.
Em termos de direitos civis?
Direitos civis, economia, detenções arbitrárias, tortura, não há liberdade de expressão. Se me pergunta se há alguma esperança no horizonte para o futuro, eu penso que a situação se vai manter igual, mas também em relação à oposição temos de reconhecer que entre os maiores movimentos políticos, os movimentos da população e a própria oposição não está a verdadeira representação do povo sírio. Uma grande parte da população critica-os e não os reconhece como os seus legítimos representantes. A realidade é que temos um movimento de milhões de sírios que querem ficar e ter eleições livres em que possam escolher os seus próprios líderes. São questões de direitos humanos básicos, não querem ser controlados por uma mesma família durante 50 anos.
Mas pensa que pode haver hipótese de mudança na Síria num futuro próximo com algum tipo de intervenção dos EUA ou da União Europeia, ou a comunidade internacional já não está verdadeiramente preocupada com a Síria?
Penso que a comunidade internacional já não põe a Síria no mapa há muitos anos, mesmo antes da guerra na Ucrânia. Penso até que talvez a Ucrânia tenha encorajado um pouco os países ocidentais a reconsiderarem novamente a Síria, porque Putin invadiu a Ucrânia e também invadiu a Síria, mas o Ocidente abandonou a Síria. Não há qualquer sanção contra a Rússia por causa do que eles fizeram na Síria, nenhuma. Há sanções por terem invadido a Crimeia em 2014, mas em relação à Síria não há nada. Bombardearam hospitais, mataram milhares de cidadãos sírios civis e não houve nenhuma sanção, nada. Há cooperação com a Rússia, até a nível militar, a nível de armamento.
Acha então, de um modo otimista, que a guerra na Ucrânia pode, de certa forma, chamar a atenção para a Síria?
Sim, sim. A Ucrânia esteve sempre do lado da Síria desde que tem um governo livre, a partir de 2014. A Ucrânia criticou sempre firmemente o regime de Assad e também a atuação da Rússia. Penso que se o Ocidente tivesse agido contra Putin e o fizesse pagar, pelo menos, um preço pesado pelo que eles fizeram na Síria, talvez ele não tivesse invadido a Ucrânia tão facilmente no ano passado.
Em relação ao Irão, apesar de o país estar a atravessar tempos muito difíceis a nível económico e de oposição nas ruas ao regime, continua a fazer um grande esforço para ajudar Assad. A Síria é essencial para o Irão ou um dia este vai desistir de apoiar Assad?
Não vão desistir porque é essencial para o Irão que é mais poderoso na Síria do que a Rússia. É mais fácil que um dia, se for derrotada na Ucrânia, a Rússia possa sair ou ficar só com certas bases militares, mas o Irão investiu no país, comprou muitas propriedades, envolveu-se em muitas instituições. É essencial para o Irão expandir-se na Síria. É claro que estão a passar tempos complicados e podem eliminar o seu apoio a Assad, mas para já continuam, pois é impossível segregar Assad do Irão.
Pensa que a comunidade internacional poderá liderar algum tipo de acordo com o Irão para resolver o problema da Síria?
Penso que se houver um acordo entre a comunidade internacional e a Rússia, isso sim poderia resolver os principais problemas na Síria. A Rússia tem cooperado com o regime e pode ser de mais confiança do que os iranianos, em quem não se pode confiar. Eles continuam a negociar e a falar desde há muito tempo. Penso que se houver um movimento de transição na Síria, a comunidade internacional deve debater com a Rússia, o que ainda não fizeram. Apresentaram algumas propostas à Rússia, mas o que esta propõe é manter Assad no poder e mudar apenas algumas coisas menores.
Acredita mais no diálogo com a Rússia do que com o Irão?
Sim. O Irão não vai negociar sobre Assad. Eles investiram no regime e no homem e é um caso pessoal, por isso nunca se vão querer ver livres dele e nunca negociarão a sua saída do poder. Isso é mandatório e já afirmaram muitas vezes que consideram a Síria como sendo parte do Irão. Assad é inegociável.
A Turquia tem tropas no território sírio e está a receber milhões de refugiados sírios. Agora Recep Erdogan estará a tentar fazer alguma normalização com Assad. Como é que vê a ação da Turquia neste contexto?
Penso que este movimento por parte de Erdogan está especialmente dirigido às eleições deste ano. A oposição continua a fazer chantagem com Erdogan a nível interno, até com os refugiados. Não acho que a Turquia possa fazer regressar milhares de refugiados porque o país está a receber apoio da UE para os manter lá. Há um acordo de 2016 entre a UE e a Turquia sobre os refugiados e a Europa continua a pagar. Além de que há milhares de trabalhadores turcos cujos empregos estão dependentes desse dinheiro. A Turquia não vai deixar a Síria facilmente, nem quer negociar.
Pensa que Erdogan tem receio, devido à situação curda, que o separatismo curdo baseado na Síria possa atacar a Turquia, ou tudo não passa de um pretexto para o exército turco se manter no país?
Penso que os movimentos curdos são uma ameaça para a Turquia e essa a principal preocupação dos turcos atualmente. Eles estão focados nos curdos dentro da Síria e consideram-nos uma verdadeira ameaça.
Imaginando que há alguma espécie de negociações ou um processo de paz nas várias regiões, acha que será possível voltar a unir os sírios - os xiitas, a maioria sunita, os curdos, os alauitas, etc.? Ainda se conseguirá reconstruir e reunificar a Síria?
Eu penso que sim. Se destituirmos quem controla o poder, a população mantém-se unida. Claro que há divergências que causam fraturas após todos estes anos, mas penso que o país pode ser reconstruído porque ainda há comunicação, amizade, relacionamento.
Mas existe o sentimento de ser sírio, sentimento de identidade nacional entre as diferentes fações?
Os sírios têm identidade nacional. As várias populações consideram-se sírias, não querem que a Síria seja dividida. Claro que não é fácil, faz parte deste período de transição, e essa reunificação exigirá um esforço, mas pode ser feita. Os que estão no poder causaram danos enormes, assim como alguns combatentes da oposição, ao movimento pela dignidade, liberdade, igualdade e cidadania, que são os princípios do movimento. Penso que nada pode ser feito enquanto Assad estiver no poder, não haverá um movimento de transição nestas circunstâncias. Quando ele for afastado, o povo elegerá os seus próprios representantes. Estou a saltar alguns passos, mas poderá ser feito.
Há alguém no exílio que possa unir os sírios? Existem pessoas de quem possamos dizer que podem vir a ser os futuros líderes da Síria ou pensa que estes emergirão da população residente?
Existem pessoas, boas pessoas, racionais, de confiança, que estão fora da Síria, poderia nomear muitas, mas o problema é que sem ordem, sem apoio, sem pressão sobre as partes para se sentarem à mesa e negociarem apagando o passado, essas pessoas, individualmente, não conseguem fazer nada. A Síria é uma peça do negócio entre vários Estados que não querem saber do sofrimento do povo sírio, dos 14 milhões de deslocados, dos milhares de desaparecidos. Assad continua a matar, nada parou.
Qual é o objetivo da sua visita a Portugal e da ida ao nosso parlamento? Procurou obter algum apoio para negociações de paz, exercer pressão sobre a União Europeia para que aja?
O vosso parlamento não tem a questão da Síria na sua agenda há muitos anos. Porque é que Portugal não comenta o que se passa na Síria, não condena Assad e também outras partes do conflito? Quando me dirigi ao parlamento dei dois grandes exemplos: o primeiro aconteceu há uma semana quando a OPCW, a organização das armas químicas, mostrou um relatório que acusa, e condena, Assad de usar armas químicas. Muitos países e Ministérios dos Negócios Estrangeiros por todo o mundo emitiram comunicados - França, Alemanha, Reino Unido, EUA, Áustria, Turquia...
Portugal não?
Portugal não.
Alguém no parlamento lhe disse alguma coisa sobre o assunto?
Eles concordam com o que eu digo, mas espero que eles exerçam pressão para pôr novamente a Síria na agenda parlamentar, não como uma prioridade em igualdade com a Ucrânia, mas...
Mas, pelo menos, que a incluam?
Pelo menos, que a incluam. Não pedi assim tanto, pedi uma declaração porque Portugal é um país democrático e nós precisamos que Portugal nos apoie e ao nosso movimento rumo à democracia. Por isso, precisamos de continuar a ouvir, pelo menos duas vezes por ano, falar da situação no nosso país. Não estamos a exigir muito, na verdade. Também pedi um encontro com o Ministério dos Negócios Estrangeiros para poder falar de certas questões. Pedir para dar relevo à situação síria, fazer ouvir a sua voz, não é uma exigência muito grande.
Este recente terremoto, que matou milhares de pessoas na Turquia e na Síria, vem alterar algo nas dinâmicas do conflito sírio?
Não acredito que o terremoto vá trazer qualquer mudança. O Ocidente nunca irá acreditar ou confiar em Assad. Assad tem uma história suja de roubar e saquear a ajuda fornecida pelas Nações Unidas e outras organizações internacionais. Assad irá tentar tirar benefícios do terremoto, mas não vai resultar. As sanções não afetam a ajuda humanitária e muitos países estão a ajudar sem quaisquer problemas.
leonidio.ferreira@dn.pt