Da exploração de Leonardo Branco vê-se (e até se ouve) o mar. A praia dos Moinhos, em São Miguel, espreita por entre as canas que limitam as parcelas de terrenos onde a Miss, a Estrela, a Xana, a Roma e outras vacas e vitelos pastam durante todo o ano. Uma vista privilegiada? Talvez. Mas a vida é dura. Tão dura que nenhum dos filhos mais velhos (27, 29 e 31 anos) a quis seguir, ameaçando a continuidade de um negócio familiar que começou em 1949. "Só tinham duas opções: trabalho ou escola." Optaram pela segunda. Dividem-se entre a Medicina, a Enfermagem e as Ciências Farmacêuticas. Resta (pouca) esperança no mais novo, que tem agora 7 anos. Já o pai, não conhece outra vida: "Tenho 60 anos, 47 disto." Sem férias. Só com pausas forçadas pelas lesões decorrentes do trabalho com animais que pesam entre 600 e 700 quilos..Às 08.45, noutros tempos, Leonardo, roupa confortável e botas de borracha nos pés, já estaria a trabalhar pelo menos há três horas. "Fazia produção de leite, mas estou a fazer a conversão para a carne. O leite exige muito tempo", justifica, destacando que também é muito mal pago. Ainda produz leite, numa pequena ordenha desbotada pelo tempo, mas, em breve, espera dedicar-se só à produção de carne..Tem 30 animais (vacas e novilhos) da raça Holstein Frísia (malhados de preto e branco) e Aberdeen-Angus (pretos), e não passa ao lado das polémicas relacionadas com o setor e o ambiente. De acordo com os dados da Agência Portuguesa do Ambiente, a agricultura, em especial a produção de carne e produtos lácteos, é responsável por 9,8% das emissões de gases com efeitos de estufa em Portugal. "Tudo tem impacto ambiental. Até nós. Já se sabe que todos os ruminantes libertam metano. Mas vamos matar as vacas todas?".Cada animal adulto come entre 40 e 50 quilos de alimento diariamente. Do cardápio fazem parte a erva, a fenossilagem (silagem feita de feno) e "um complemento" de ração. "Descansam e ficam a ruminar. Quando acabam, levantam-se e voltam a comer. Passam o dia nisto." E é no processo digestivo - fermentação entérica - que é libertado o metano (cujo potencial de poluição é 20 vezes superior ao do dióxido de carbono).."Não é nenhuma novidade e não se pode impedir isso. É certo que houve um aumento do encabeçamento, mas não há espaço na ilha para mais animais. O que existe a mais são as viaturas", diz Leonardo, que não acredita que, globalmente, o setor agropecuário produza mais gases com efeito de estufa do que o dos transportes, como indica o estudo "A Longa Sombra da Pecuária", de 2006, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura)..Segundo essa investigação, a pecuária é responsável por 18% das emissões, enquanto os transportes representam 13,5%. Dados que mais tarde foram contestados e revistos - e o peso da pecuária passou para 14%. Ainda assim, superior ao dos transportes..Apesar da desconfiança em relação às percentagens, este lavrador vai fazendo o que sabe para minimizar o seu impacto: "Não uso cargas de fertilizantes. Espalho-os à mão e em pouca quantidade, quando há baixa produtividade ou para preparar as ervas para corte." Além disso faz separação de resíduos e aproveita a água da nascente, "que normalmente corre para o mar"..A família de Leonardo é uma das cerca de três mil que dependem diretamente da pecuária nos Açores, onde, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e o Pordata, existe mais gado do que pessoas: 279 mil bovinos para 245 525 humanos (dados de 2018). Pelas contas do presidente da Associação Agrícola de São Miguel (AASM), há 2400 produtores de leite (que produzem 33% a 35% do total nacional) e mais de cinco mil produtores de carne, uma vez que os de leite também produzem carne (vitelos e vacas). "Este é o principal pilar da Região Autónoma dos Açores", sublinha Jorge Rita, à conversa com o DN no concorrido restaurante da associação..Foi com "espanto" que recebeu a notícia da proibição de carne de vaca nas cantinas da Universidade de Coimbra. "Até parece que somos os únicos prevaricadores em termos ambientais e que as vacas são animais monstruosos", refere, destacando que os lavradores "têm consciência do impacto que os animais têm no meio ambiente". "Mas, comparativamente ao resto, ainda estamos muito a crédito".."Se não tivermos um bom ambiente, um bom clima, os mais prejudicados são os agricultores", afirma Jorge Rita, assegurando que "há uma grande sensibilidade em termos ambientais nas ilhas", onde a produção é "maioritariamente extensiva". Segundo o presidente da AASM, os lavradores perceberam "os erros acumulados ao longo dos anos", que "não foram voluntários", e tomaram medidas..Refere, por exemplo, a afluência de cargas excessivas de nutrientes aos planos de água das lagoas, resultado da intensificação da criação de gado e a aplicação de fertilizantes inorgânicos, que acelerou a eutrofização (desenvolvimento excessivo de matéria orgânica por excesso de nutrientes) dos ex-líbris de São Miguel. "Com o governo, reduzimos drasticamente o encabeçamento nessas zonas. É um exemplo de como estamos sensíveis às questões ambientais.".Mas o processo de recuperação das lagoas é longo. Marta Guerreiro, secretária regional da Energia, Ambiente e Turismo, diz que a Lagoa das Sete Cidades e a Lagoa das Furnas "estão em plena recuperação". Na primeira, a lagoa verde oscila "entre eutrófica e mesotrófica [estado intermédio], sendo que esta evolução resulta, em grande parte, das obras hidráulicas executadas para desvio de afluentes". Já a das Furnas "permanece eutrofizada, apesar de, a partir de 2012, a qualidade da água ter melhorado substancialmente, fruto da retirada de algumas explorações pecuárias na bacia hidrográfica nos anos antecedentes"..Das vacas felizes ao leite biológico.No Monte Inglês está Eugénio Câmara, um dos primeiros produtores a integrar o Programa Leite das Vacas Felizes, um dos 44 com produção certificada. Aos 54 anos, olhos azuis e cabelo claro, recorda que o negócio começou com o bisavô. "Nasci neste ambiente." Formou-se em Zootecnia e dedicou-se à agropecuária. Tem cem vacas em produção de leite e outros 120 animais (dos novilhos aos vitelos). Como manda o programa, as vacas pastam 365 dias por ano: comem "silagem de erva, silagem de milho e ração". "O pasto é um alimento de qualidade e barato, mas não garante as necessidades todas do animal." Só vão à vacaria para a ordenha e comer o suplemento. É lá que as encontramos, por volta das 18.00, quando se preparam para voltar ao pasto..Além do bem-estar animal, um dos eixos do programa é a "produção sustentável". Ao DN, Eugénio deixa alguns exemplos dos requisitos: "Os efluentes não podem ir para as linhas de água, são distribuídos na pastagem; fazemos análises de terra para gerir a utilização de fertilizantes; usamos principalmente adubos de libertação lenta; temos um reservatório onde fazemos separação de plástico, que depois é reciclado." O produtor tem também dois reservatórios para recolher água dos telhados, que depois usa para lavar as instalações..Eduardo Vasconcelos, diretor de Aprovisionamento de Leite da BEL, explica que além dos requisitos ambientais, há um apelo à diminuição do número de animais por área e um trabalho na longevidade dos animais. Estas questões fazem parte do programa desde o início (2015). "Mas neste ano vamos dar um grande passo com parcerias e formação de produtores", que vão resultar num manual de impacto ambiental e numa ferramenta de avaliação de explorações consoante o seu impacto..Atualmente, seis produtores de leite estão a fazer a conversão para a produção biológica - um processo que demora dois anos. Um deles é Luís Gonzaga, com quem nos encontramos no miradouro de Santa Iria. Pelo caminho, há uma exploração que se destaca pela dimensão e pelo número de vacas. E é precisamente para essa que nos leva. "São 130", precisa, destacando que tem um total de 300 animais (com vitelos, bois e novilhas), espalhados por 138 hectares. Sabe o nome de todas: "A 7300 é a Gazela. Aquela, a 0077, é a Baby. A 0221 é a Florbela." E assim sucessivamente. "Muitas vezes quem dá os nomes são os empregados. Colocam nomes de raparigas que conhecem no Facebook e assim. Temos de sentir o nome que damos aos animais.".Luís vem de uma família de 12 irmãos: seis são produtores de leite, os outros tiraram cursos superiores. "Vim para esta atividade por gosto. Faço o que gosto." Veste-se de azul, chapéu incluído, mas não é essa a cor que o define: "Sempre fui um bocado verde. Sinto-me chocado quando vejo determinados exageros na pecuária. O biológico foi a solução que encontrei para responder aos meus ideais." Faltam-lhe poucos meses para passar a ser um produtor de leite biológico certificado: "As vacas têm de estar seis meses a ingerir alimentação só de origem biológica. Estou a acabar os alimentos que tenho.".Não usa "adubos de síntese, pesticidas, herbicidas ou rações de produção convencional". Privilegia a rotação das culturas, as leguminosas, que ajudam na sequestração de carbono e na fixação de azoto, e só utiliza medicamentos "em último recurso"..As vacas são ordenhadas duas vezes por dia - 15 de cada vez - e passam a noite junto ao parque da alimentação (e podem lá dormir quando chove), onde Luís vai otimizando os processos para ter uma maior eficiência energética. "Agora queremos pôr painéis solares, para ser autossustentáveis." Luís Gonzaga acredita que irá produzir menos. "Mas foi a forma que encontrei para dar o meu contributo ao planeta e à humanidade. Sendo um agricultor biológico, acredito que vou contribuir com menos emissões de gases com efeito de estufa.".Longa lista de problemas."A produção pecuária tem sempre impactos, que podem ser maiores ou menores, consoante a intensidade da produção", diz Nuno Forner, da associação ambientalista Zero, destacando que um sistema "mais próximo do biológico terá menos impacto". Além da utilização de fertilizantes e pesticidas nas pastagens, há o impacto da alimentação. "Uma coisa é ter um regime extensivo com a utilização quase exclusiva de pastagens. Outra é usar rações que resultam de culturas em países distantes como o Brasil, onde há implicações nos ecossistemas, destruição de áreas de floresta, perda de biodiversidade.".Mas os sistemas de produção são bastante complexos. Ana Sofia Santos, presidente da Associação Portuguesa de Engenharia Zootécnica, diz que "um sistema à base de pastagem tem mais vantagens no cômputo geral da sustentabilidade e na obtenção de produtos de elevada qualidade". "Não há nada mais green-frienldy do que animais a pastar erva do chão e a deixar estrume no chão. É economia circular." No entanto, revela, se for analisada só a libertação de metano, esses animais até são os que libertam mais gases com efeitos de estufa na ruminação. "Quanto mais fibrosa a alimentação, maior a libertação de gases e maior a ineficiência do animal." Mas não podemos "olhar só para isso". "O setor emite, mas quanto sequestra no total?", questiona..Nos Açores, um dos problemas apontados é a monocultura da vaca. Baseado no estudo "A agricultura do arquipélago dos Açores", Filipe Tavares, presidente da Associação Regional para a Promoção e Desenvolvimento do Turismo, Ambiente, Cultura e Saúde dos Açores (ARTAC), refere que a superfície agrícola útil (SAU) dos Açores equivale a 51,6% (120 412 hectares), dos quais 97,6% destinam-se ao cultivo de pastagem e milho forrageiro para a alimentação da gado bovino - e apenas 2,4% é utilizada noutras culturas..Para Filipe Tavares, algumas das ameaças da pecuária prendem-se com "a ocupação excessiva da SAU, boicotando o desenvolvimento de outras culturas" e com "a ocupação de áreas que deveriam ser dedicadas à floresta autóctone, fundamental para a retenção da água da chuva, proteção contra a erosão e no combate às alterações climáticas". Entre outras, como a "utilização de água potável (estudos dizem que são necessários 15 mil litros de água para produzir um quilo de carne de bovino) e a contaminação dos solos/lençóis freáticos, através da urina, dejetos e uso constante de químicos"..No que diz respeito à água, Rui Coutinho, vice-presidente da Quercus dos Açores, diz que, ao contrário do que acontece no continente, nas ilhas "só uma fração muito pequena é usada para irrigação" dos solos. E, por agora, a poluição dos recursos hídricos não é um problema. Mas existem outros desafios: "Há pastagens que foram abandonadas e ocupadas por silvas e infestantes, introduzindo desequilíbrios na vegetação." Quanto aos pesticidas, o professor da Universidade dos Açores (UAc) lembra que "ainda não há interdição dos glifosatos". "Há uma mudança que é preciso fazer, mas passa muito pela formação e educação dos intervenientes." Todas as mudanças, defende, "devem assegurar o equilíbrio económico-financeiro da região"..Pode pensar-se que, por muitas ações que sejam tomadas, os bovinos vão sempre emitir grandes quantidades de metano, mas até essas emissões podem ser controladas. Alfredo Borba, especialista em nutrição animal, diz que "é possível reduzir o impacto da pecuária escolhendo os alimentos que se dá aos animais". Desde logo com alimentação de precisão: "Se não der excessos em demasia não tenho perdas." Uma estratégia que o professor da UAc acredita que já está a ser usada nas ilhas. Mas existem outras medidas eficazes, que ainda não foram adotadas: "Tratamentos que tornam os alimentos mais digestíveis, suplementação, aditivos ou compostos [os mais comuns proibidos na UE], probióticos e manipulação genética.".A produção intensiva de vitelos.A produção intensiva parece ser uma exceção nos Açores, e é usada sobretudo na criação de vitelos. É esse o negócio ao qual se dedica a família de Orlando Couto, de 41 anos: "Começou nos anos 60, com o meu avô. A carne apareceu como um subproduto do leite." Até então, o destino dos vitelos era quase sempre a morte..Os gatos - muitos para serem contados - circulam entre os pavilhões. "São eles que combatem as pragas." Orlando guia-nos numa visita que começa na "creche", onde os vitelos chegam com duas semanas, vindo das explorações de leite. Ficam até aos três meses em jaulas individuais, onde recebem água, ração e leite de substituição. Passam depois para os currais comunitários, onde são alimentados com ração, silagem, milho e palha. Ali, são produzidas cerca de 500 cabeças por ano - entram vitelos e saem vitelões para os matadouros..Orlando diz que não é indiferente às questões ambientais. "Não somos quadrados. Estamos preocupados. Mas há situações com uma pegada mais forte e ninguém se preocupa.".Pecuária vs. destino sustentável: como se harmonizam?.Vinte por cento do efetivo bovino do país (1,3 milhões) está na Região Autónoma dos Açores, onde, nos primeiros seis meses do ano, foram produzidos mais de 11 milhões de quilos de carne e de 444 milhões de litros de leite. Números expressivos associados a elevados impactos ambientais, numa região que luta pela certificação como destino turístico sustentável. Como se harmoniza tudo isto?.Marta Guerreiro, secretária regional da Energia, Ambiente e Turismo, lembra que o governo dos Açores aprovou recentemente o Programa Regional para as Alterações Climáticas, segundo o qual, para as emissões de gases com efeito de estufa, contribuem, principalmente, o transporte [22% a 33%], a fermentação entérica [23% a 31%], a produção de eletricidade [15%-18%], os solos agrícolas devido ao uso de fertilizantes azotados e calagem [8%-13%], o uso de energia na agricultura [5%] e os setores comercial e residencial [4%-5%]..A mitigação das emissões prevista no Programa prevê sobretudo os setores da energia, transportes, indústria e serviços, o que "não iliba o setor agrícola" de dar a sua contribuição. "Também no setor agrícola e na alteração de usos do solo serão tomadas medidas concretas, através do aumento do sequestro de carbono em solos orgânicos e através da racionalização do uso de fertilizantes, bem como nas áreas florestais", diz a responsável..Para Filipe Tavares, presidente da Associação Regional para a Promoção e Desenvolvimento do Turismo, Ambiente, Cultura e Saúde dos Açores (ARTAC), ainda há muito a fazer: "Diariamente, promovemos o consumo indireto de organismos geneticamente modificados (OGM) através do leite e da carne que produzimos nos Açores. Assim como de glifosato, que continua a ser "derramado" nas ruas, terras e vinhas. Tudo isto é incompatível com uma região que pretende ser sustentável.".Não defende medidas radicais, até porque "há falta de qualificação e grande parte dos agricultores sobrevivem com grande dificuldade e ajudas constantes, reféns de uma indústria que tem forçosamente de se tornar mais competitiva para sobreviver e poder pagar melhor os produtores" - todos se queixam do baixo preço do leite. Para si, "a solução passa por melhorar a qualidade das explorações agrícolas, tornando-as mais eficientes e ecológicas, através da formação dos produtores e ajuda para a inovação. A redução do efetivo bovino é uma urgência ambiental e tal não poderá ser negado nem desculpado com a inércia da intervenção noutros setores". Defende, ainda, a eficiência energética das explorações, a aposta em fontes renováveis de energia e a captação e armazenamento de água..Na opinião do diretor do Festival Ecológico Azores Burning Summer, "qualquer método de produção deve ter em conta o conceito de compensação ambiental", com a introdução de árvores nativas, por exemplo, para "condicionar os produtores e a indústria a adotar medidas que permitam compensar o ambiente pelos impactos negativos decorrentes da sua atividade"..O casamento perfeito.Às explorações pecuárias chegam muitos turistas que querem ver como é produzido o leite dos Açores. Para Jorge Rita, presidente da Associação Agrícola de São Miguel, "turismo e agricultura" formam o casamento perfeito. Na opinião deste representante, "o que potencia o turismo é a agricultura". E, com as visitas às explorações, é possível ampliar os benefícios..Marta Guerreiro reconhece que "exatamente pelas características atuais da paisagem açoriana, o contributo da agricultura e da pecuária, bem como dos agricultores e dos lavradores, é preponderante na sua dinâmica, pela sua manutenção ou transformação, contribuindo, assim, para preservação da atual imagem identitária da paisagem açoriana, enquanto recurso de grande relevância para o turismo".