As três órfãs de Merkel

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A CDU sente-se já órfã de Merkel, a Alemanha também, e o que é mais impressionante ainda é que a própria Europa agora a 27 parece pouco preparada para uma saída de cena da chanceler alemã, no entanto mais do que anunciada. É certo que Angela Dorothea Merkel, a filha de um pastor luterano criada na RDA e sucessora do carismático Helmut Kohl à frente dos democratas-cristãos no pós-reunificação, é chanceler desde 2005, o que lhe dá uma experiência política sem par entre os líderes da União Europeia, e com igual ou parecido só em figuras como o russo Vladimir Putin ou o japonês Shinzo Abe. Quando Merkel derrotou o chanceler social-democrata Gerhard Schröder, já lá vão quase 15 anos, Xi Jinping ainda não era sequer vice-presidente da China e Donald Trump, esse, embora popular como magnata do imobiliário e organizador de concursos de misses, era inimaginável na Casa Branca.

Chegou a pensar-se que a sucessão de Merkel tanto na CDU como à frente da Alemanha estava resolvida com a ascensão de Annegret Kramp-Karrenbauer, ou AKK, a delfim. Seria tudo uma questão de oportunidade, talvez com Merkel a sair de cena a tempo de dar à atual ministra da Defesa espaço para enfrentar uma campanha eleitoral e legitimar nas urnas a sucessão. Mas a demissão de AKK da liderança do partido reabre uma era de incertezas internas, até porque um dos favoritos, Friedrich Merz, se assume como uma espécie de anti-Merkel, pelo menos no sentido de querer levar a CDU mais para a direita, acabando com o centrismo quase social-democrata dos últimos anos.

Também a nível da União Europeia, e sobretudo no contexto da saída do Reino Unido, parecia bem encaminhado um reforço do eixo franco-alemão graças a um bom entendimento pessoal entre Emmanuel Macron e Merkel, malgrado ele ser mais ousado do que ela. Um bom entendimento que talvez se prolongasse com AKK se esta chegasse a chanceler nas eleições que deverão acontecer no próximo ano. E digo talvez porque houve ocasiões em que a ministra da Defesa (que sucedeu no cargo a outra delfim de Merkel, a agora presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen) criticara já o presidente francês e o seu fervor por um centralismo europeu decalcado da tradição gaulesa.

Também Merz será tudo menos um adepto de um centralismo europeu, seja no sentido de limitar as competências alemãs na gestão do seu orçamento, seja no sentido de implicar os bancos alemães em algum tipo de sistema de salvaguarda geral do setor. Aliás, não é de esperar que outro líder da CDU, caso Merz perca, por exemplo, para Armin Laschet, presidente do governo estadual da Renânia do Norte-Vestefália, seja um campeão do centralismo que Macron defende. Contudo, Laschet em tempos chegou a admitir a hipótese das eurobonds.

Não existem verdadeiras alternativas ao eixo franco-alemão na União Europeia. Bem pode Macron desafiar a Polónia a ter mais protagonismo (agora que a saída do Reino Unido a transformou num dos cinco grandes) ou fazer as pazes com a Itália através de uma cimeira com Giuseppe Conte (um primeiro-ministro renascido depois de Matteo Salvini ter deixado a pasta do Interior), que na realidade será sempre a ação conjunta de Paris e de Berlim a fazer avançar decisões ou a desbloquear impasses. E isto por muito natural que se torne o surgimento de grupos dentro dos 27, como os "países frugais" e os "países amigos da coesão" agora, grupos que serão sempre voláteis, feitos e refeitos consoante o que o interesse nacional recomendar.

Ora, mais importante do que resolver este sentimento de orfandade em relação a Merkel, que por enquanto continua em plenas funções, é garantir que o eixo franco-alemão funciona na sua versão benigna, não como dupla que coordena diktats aos restantes mas sim como dupla que inspira o projeto europeísta. E uma forma de o reforçar, dando alento aos seus líderes para se entender mesmo quando as personalidades não são de química mútua fácil, é na política externa avançar para decisões por maioria qualificada, assumidas claramente como tal e não encapotadas, como aconteceu há semanas em relação ao plano americano para o conflito israelo-palestiniano. É que, tal como há vida depois do Brexit, também terá de haver vida depois de Merkel. E desafios como o do aquecimento global, o terrorismo islâmico ou as migrações não vão desaparecer só porque a admirável chanceler se reformou.

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